"Na 1.ª Divisão joga-se a saúde por causa do dinheiro, na 2.ª Divisão compensa-se com algum dinheiro não se jogar por causa da saúde
1. Está decidido, mas não está definido. Dizem-nos que vai ser concluído o campeonato iniciado em Agosto do ano passado. A meu ver, se a prova chegar ao seu final, será um simulacro e um enviesamento de campeonato. Sei que estarei entre uma minoria (ou talvez não) dos que pensam que a prova deveria ter sido cancelada, ponto final. Claro que, com o cancelamento, haveria alguns aspectos por resolver, mas para tal sempre se poderiam delinear formas específicas e expeditas de os solucionar.
Esta agora considerada e chamada retoma da época futebolística é insensata, injusta, assimétrica e populista. Insensata, porque vai decorrer com tais restrições que é tudo menos o futebol que sempre existiu; treinos multi condicionados, jogos à porta fechada, restrição de campos relacionados, riscos de aglomeração fora dos estádios, etc. Clamorosamente injusta, porque a falsa rentrée favorece uns poucos em detrimentos de todos ou outros, assim se consolidando um futebol por anéis cada vez mais cavados e estanques. Assimétrica, em função não das questões desportivas, mas do todo poderoso dinheiro, com tomada de decisões diferentes para situações desportivas idênticas. Populista, porque é a cedência à excepção por medida, fortemente impulsionada pela simpatia política de dar 'coisas boas' ao povo: futebol e assunto para discutir nas televisões e fora delas.
Vejamos mais em detalhe estes e outros pontos de uma decisão que, naturalmente, seria difícil em qualquer caso. Não podendo haver soluções boas, sabemos que qualquer posição tem prós e contras. Acontece que o decidido toma mais os prós (desportivamente populares= por suficientes e desconsidera o lado dos contras. E, para esta avaliação, não nos esqueçamos que não estamos a falar de uma posta restante da competição, mas de ainda 10 jornadas e 80 jogos correspondentes a 30 por cento do campeonato.
2. É incompreensível que os desportos colectivos tenham sido dados como concluídos e o futebol não. Bem sei que parte deles - hóquei, andebol, basquetebol, futsal, voleibol - se realizam em recintos fechados, mas nestes casos também seriam à porta fechada. Alguns, por exemplo, como o voleibol até nem têm contacto físico. E há ainda o râguebi ao ar livre, também suspenso, não se compreendendo como é que para casos similares se decide tão diferentemente. Ou melhor, percebe-se: é que o futebol movimenta mais interesses, o resto é quase paisagem, a não ser quando os titulares dos órgãos de soberania se apressam na afã de serem os primeiros a mandar felicitações por uma conquista internacional nestas modalidades.
Mas a assimetria não é só com outros desportos associativos. É, igualmente, dentro do omnipresente futebol. A FPF decidiu - e bem - dar por terminadas todas as provas, ou seja, o chamado Campeonato de Portugal (3.º escalão), todos os escalões não seniores e o futebol feminino. Agora a Liga resolve dar por concluído o campeonato da 2.ª Divisão (desculpem-me, mas nunca sei dizer as novas designações). Mas porquê? Percebo que haja menos condições logísticas para prevenir contaminações, mas, pelos vistos, a decisão foi tomada de chofre, sem se dar uma cabal e completa justificação. Reconhece-se assim que há profissionais de primeira e de segunda, clubes grandes, pequenos e miseráveis. Depois dão-se uns trocos para acalmar os ânimos, pois, no fim do dia, o dinheiro é o principal motor das vontades ou falta delas.
O recomeço vai fazer-se com normas ridículas para 'inglês ver'. Os jogadores têm de ser divididos em dois autocarros, em dois vestiários, as equipas entram separadamente no relvado, os atletas não podem cumprimentar-se antes ou depois de um encontro, se calhar não podem festejar um golo, mas pode, durante a partida, empurrar-se, chocar, cair em cima uns dos outros, fazer barreiras nos livres, etc. E como vai ser jogar ininterruptamente em dois meses de calor, como são Junho e Julho? E quanto ás máscaras, como será? Convenhamos, o recomeço da 1.ª Divisão beneficia de «bonomia técnico-sanitária» das autoridades de saúde,sujeitas e uma pressão que, para outras actividades ou ajuntamentos, não têm.
3. A reunião que juntou dirigentes do futebol com o Governo e os presidentes dos três clubes ainda designados grandes (abro um parêntesis, para saudar os seus três presidentes que souberam discernir o essencial neste momento) foi certamente positiva, sobretudo quanto à ideia de auscultar opiniões e orientações. Mas foi também negativa quanto à representatividade do 1.ª escalão do futebol português. Benfica, Porto e Sporting são os clubes tradicionalmente mais fortes e com mais apoio popular, mas que eu saiba não representam os outros 15 clubes da Liga. Li notícias que estavam por eles mandatados, embora não saibamos como e para que fins e decisões. Eu se fosse adepto de um deles - por exemplo, do Sporting de Braga ou Vitória de Guimarães - ficaria desolado e irritado com esta segmentação para um decisão excepcional e jamais existente, envolvendo todos os clubes. É este o critério representativo de uma Liga que existe para representar todos os seus associados de um modo igual?
É claro que, para o Governo, esta reunião foi um figuinho bem saboroso. Permitiu-lhe actuar de acordo com o que o povo quer, independentemente de outras circunstâncias (ou seja, ser populista), abrir uma oportuna excepção bem recebida e pôr-se de fora da questão sanitária a cargo da Direcção-Geral da Saúde, como se esta tivesse total liberdade para decidir contrariamente ao aceite pelo Executivo!
4. Este campeonato pode decorrer até ao fim, mas não tem qualquer interesse desportivo. Não se trata de retomar um torneio, mas o de travestir três meses depois por via de uns jogos à porta fechada, fingindo que é a mesma competição. É como, mal comparado, ter-se uma prótese numa perna e dizer que é tal e qual ter uma perna sem prótese. Não se pense que digo isto, porque o Porto está um ponto à frente do Benfica. Sinceramente, mesmo que seja o meu clube a concluir esta etapa em primeiro, não vejo motivos para festejar, como se tivesse sido ganho um verdadeiro e normal campeonato.
Obviamente, reconheço que a anulação do resto da época teria consequências económicas avultadas caso não se fizesse este pseudo torneio Clausura. Nada diferente do que se passa em indústrias e serviços, mesmo essenciais, que lutam até pela sobrevivência. No futebol, tudo ou quase tudo por causa dos direitos televisivos, ainda que aqui a pressão seja a dos três grandes que recebem a fatia gorda destas receitas (fossem elas centralizaads e a questão tomaria outros tons...). Todavia, há ganhos imediatos que podem causar prejuízos diferidos. Refiro-me à sobreposição do fim da época com o começo da próxima, à maior dificuldade de geri as qualificações europeias (para a Liga Europa e para o Benfica ou Porto na Champions), às transferências no próximo mercado, etc.
5. No momento em que escrevo, ainda há muitas coisas por afinar. Algumas de pormenor e de organização, mas outras de natureza substantiva sobre a própria natureza de competição. Tenho lido que se estão a avaliar os campos elegíveis para este torneio, sendo que uma das hipóteses é apenas a de considerar os estádios do Europeu 2004 (dos oito, quatro - Coimbra, Aveiro, Leiria e Algarve - não têm clubes na 1.ª Divisão...). Ora se assim for, estamos perante uma distorção da prova e das regras regulamentares do campeonato. Uma batota apriorística o anti-regulamentar. Ou seja, o conceito de jogar em casa ou jogar fora estará posto em causa, pelo que não há ligação com as 24 jornadas há realizadas. Assim se desvirtuará a verdade desportiva regulamentar. Por exemplo, quanto aos dois candidatos ao título, o Benfica joga 'fora' com Portimonense, Rio Ave, Marítimo, Famalicão e Aves e o Porto com Famalicão, Aves, Paços de Ferreira e Tondela. Será a mesma coisa do que jogar estes encontros num qualquer outro campo dito neutro? E será que o Marítimo e o Santa Clara têm de vir para o Continente ficar mês e meio, ao mesmo tempo que está previsto que as equipas se deslocarão apenas nos dias dos jogos, não ficando em unidades hoteleiras? Que grande confusão e contorcionismo para se concluir um agora nado-morto?
Embora se queira transformar esta invenção num fim justo e adequado da principal competição nacional, o certo é que ela está ferida de morte, quanto ao seu mérito, razoabilidade e igualdade de oportunidades. Preparemos-nos para uma salcicharia desportiva liofilizada e não sei se devidamente 'pasteurizada'.
Em suma, na 1.ª Divisão joga-se a saúde por causa do dinheiro (transmissões televisivas), na 2.ª Divisão compensa-se com algum dinheiro não se jogar por causa da saúde. Em que ficamos?
Bagão Félix, in A Bola
PS: Volto a destacar outra variável que até agora não vi ninguém referir: qual o protocolo quando um jogador acusar positivo?! Seja num teste a 'meio-da-semana', ou num teste no dia do jogo?! Joga-se sem esse jogador, ou toda a equipa fica de 'quarentena'?!!!
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