"Começo com palavras do Padre Manuel Antunes, um dos mais perspicazes hermeneutas da cultura do nosso tempo: “Um simples olhar panorâmico pelo mundo de hoje divisa um universo em mutação, um horizonte móvel que, em cada dia, aparece outro. Teorias que se sucedem às teorias, descobertas que se sucedem às descobertas, quadros que se renovam em movimento incessante, técnicas que surgem a uma palpitação de vertigem, facilitando a vida, seduzindo a vista ansiosa desta criança eterna que é o homem. No entanto, neste universo em radical transformação, só ele - o homem – não mudou proporcionalmente” (Compreender o Mundo e Actualizar a Igreja, Gradiva, Lisboa, 2018, p. 158). Também, no âmbito da chamada Educação Física, já houve quem sustentasse que se tratava da “educação do físico” ou da “educação pelo físico”. Pensava-se, então, cartesianamente, que o corpo era físico tão-só, em oposição à alma, puro espírito, imaterial e eterno. Deu-se, depois, um passo em frente e a Educação Física passou a entender-se como educação corporal ou, como queria José María Cagigal, “educação do homem corporal” e referia-se que não se tratava unicamente do “corpo acrobático”, mas também do “corpo pensante” e do “corpo expressivo”. E afirmava-se, sem lugar para dúvidas, que reduzir a Educação Física à ginástica e ao desporto significava uma profunda ignorância, em relação às imensas virtualidades do corpo. Cito agora o livro La Educacion Fisica en la Educacion Basica de Benilde Vásquez (Gymnos Editorial, Madrid, 1989): “El cuerpo es el lugar morfológico-funcional de todas las estruturas psicoorgánicas, afirman los médicos; el cuerpo inaugura el mundo , en expresión de los filósofos existencialistas. El cuerpo es el primer medio de conocimiento y relación afirman los psicólogos infantiles. El cuerpo es um símbolo, dirán los sociólogos de la cultura” (p. 117). Adiantou-se, depois, a expressão “educação do movimento”, ou “educação pelo movimento”. Mas… de que movimento falavam os especialistas? A Educação Física passaria a ser “educação do movimento”, ou “educação pelo movimento”. Mas (repito-me) não é a palavra “movimento” demasiado vaga e abstracta, para transformar-se em paradigma científico de uma área do conhecimento?
Perante o amplo panorama de memórias, de evocações e de propostas, que a história da educação física e do desporto nos prodigaliza, procurei na fenomenologia (a última das escolas filosóficas, que estudei na minha licenciatura) o conceito de “motricidade”, para encontrar um paradigma, onde coubesse , com inéditas e arejadas perspectivas, o “corpo em ato”, quero eu dizer: o corpo no movimento intencional da transcendência. Em 1978, na revista Ludens (Vol. 3, nº 1, Outubro-Dezembro de 1978), há mais de 40 anos portanto, já eu deixei escrito: “O homem em movimento, nomeadamente em situação de jogo e desporto, é o objecto de uma ciência nova (…).O Homem passa a ter assim mais uma forma de conhecer e de conhecer-se e, como é óbvio, ao nível das ciências que sobre ele se debruçam, preferentemente: as Ciências do Homem!” E escrevi ainda que “o estatuto do corpo fundamenta a cientificidade desta disciplina”. E que “o Homem cria valores e significações e a sua motricidade revela-o. O Homem, ao transformar, transforma-se”. Nove anos depois, em documento que apresentei ao director da Faculdade de Educação Física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas – Brasil), onde leccionei durante dois anos (1987 e 1988) já eu questionava: “Mas haverá lugar para a ciência da motricidade humana (CMH), no quadro geral das ciências? Se a consideramos um ramo da biologia, como pretendia Spencer em relação à psicologia, ela tem o seu lugar marcado entre as ciências da natureza; se a definirmos como a ciência que estuda a explicação e a compreensão das condutas motoras, ela cabe inteiramente entre as ciências do homem”. E, linhas adiante, escrevia que a motricidade supõe:
1. uma visão sistémica do Homem (que o mesmo é dizer: em termos de relação e de integração).
2. A existência de um ser não especializado e carenciado, aberto ao mundo, aos outros e à transcendência. Lembrava mesmo a célebre frase de Pascal: “o homem excede infinitamente o homem”.
3. E, porque aberto ao mundo, aos outros e à transcendência e deles carente, um ser práxico, procurando encontrar e produzir o que, na complexidade, lhe permite unidade e realização.
4. E, porque ser práxico, com acesso a uma experiência englobante, agente e fautor de cultura, projecto originário de todo o sentido e “ser axiotrópico” (que persegue, apreende, cria e realiza valores).
E propunha, como objecto de estudo, a motricidade humana, tentando explicar o que essa opção significava, para mim:
1. Que a Educação Física não abrange todo o campo de ação dos seus profissionais.
2. Que a Educação Motora (que poderá substituir a expressão Educação Física) é, para mim, o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana (CMH).
3. Que as Faculdades de Educação Física ou de Desporto deverão passar a chamar-se Faculdades de Motricidade Humana.
4. Que a Motricidade Humana explica explica o absoluto do Sentido e o sentido do Absoluto, emergentes do movimento intencional, específico do ser carente, que persegue a superação (a transcendência) e o sonho.
5. Que desta forma, como ciência e consciência, a Motricidade Humana adquire lugar indiscutível entre os “curricula” universitários.
6. Que os “curricula” das Faculdades de Motricidade Humana hão-de acrescentar às disciplinas básicas de teor cultural, ou de teor técnico-desportivo, outras disciplinas de teor cultural.
7. Que a Educação Física não morre, porque não morre nunca o que foi superado.
8. Que a área da Motricidade Humana tem a riqueza ontológica e a dignidade conceptual das restantes áreas científicas.
9. E, assim, como pela transcendência, ela é uma exploração ilimitada do possível, a CMH transforma-se, indiscutivelmente, em Ciência e Cultura. E assim terminava: “Não sei se todos os seres humanos coincidem em certos princípios éticos. Mas há valores, sem os quais impossível se torna viver humanamente”. E esses valores, pela transcendência, estão presentes na CMH. E, no meu entender, não têm Pátria. Os Lusíadas valem e valem para todo o mundo. Os Sonetos de Antero de Quental são tão compreendidos e admirados, em Portugal, como na Alemanha, na França e na Inglaterra. Afinal, como Verlaine tem irmãos em Portugal. A obra de José Saramago e a de António Lobo Antunes florescem em todas as culturas. Não esqueço o Padre Manuel Antunes, quando escreve: “Sim, as filosofias têm uma pátria. Porém, esta é, muito mais que um espaço geográfico, um espaço espiritual” (Do Espírito e do Tempo, p. 146).
Se a motricidade humana tem sentido? Eu faço minha a lei da complexidade-consciência, de Teilhard de Chardin. Ao redor de cada um de nós, os corpos não são unicamente pequenos e grandes, ínfimos e imensos, mas também simples e complexos. Os polos desta imensa cadeia, que vai do múltiplo puro, vestíbulo do nada, até ao cérebro humano, com biliões e biliões de células nervosas, dão-nos a convicção de que o mundo da complexidade é tão maravilhosamente grande, tão espantosamente astronómico, como o mundo galáctico, ou supergalático. Para Teilhard de Chardin, a lei da complexidade-consciência torna possível uma leitura integral do homem e do universo. De facto, o universo não é uma ordem, mas um processo. O cosmos desponta, veemente, como cosmogénese e, portanto, é uma visão dinâmica, e não estática, o que ele nos proporciona. “O homem torna-se a flecha, o sentido da própria evolução, toda a realidade cósmica se vem condensar na personalidade humana” José Gomes Silvestre, Acção e Sentido em Teilhard de Chardin, Instituto Piaget, Lisboa, 2002, p. 150). É o próprio Teilhard de Chardin a dizê-lo: “antes de dar sentido ao mundo, o homem é o sentido do mundo” (I, p. 196). Para este cientista e filósofo, “o que, em última análise, conta em matéria de evolução é saber a quem cosmicamente cabe a última palavra, se à majestosa e universal corrente da entropia, se às forças ascensionais e convergentes da vitalização. Por outras palavras, saber se é em direção do inorgânico inconsciente (solução materialista) se na direcção do orgânico consciente (solução espiritualista) que o universo, em última análise, tomba” (José Gomes Silvestre, op. cit., p. 151). Desde a Cosmogénese à Cristogénese, passando pela Biogénese e pela Noogénese, toda a matéria se movimenta em direção ao espírito e do espírito a Cristo. Também para mim, como para Teilhard, o ser humano é matéria que se faz espírito. E, segundo a teoria que rege a CMH, porque é bios e logos, pela transcendência, tende ao Absoluto. A transcendência não proporciona ao ser humano as últimas aquisições tecnocientíficas, mas oferece-lhe um “saber orientador” que lhe permite possa descobrir o sentido da existência, no processo evolutivo. O sentido da existência é, pela transcendência, Deus. É conhecida a invetiva de Nietzsche: “O homem é algo que deve ser superado”. Inteiramente de acordo – mas para ser mais homem! É este o sentido da motricidade humana!"
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