"Há quem treine ataque organizado [...] jogadas de laboratório, e depois há quem pareça ter treino específico de mergulhos para a piscina
Foi um bom fim de semana para o Benfica. Foi bom, em primeiro lugar, porque a equipa soube aproveitar a superioridade numérica para realizar uma exibição consistente e quase sempre dominadora frente a uma das equipas mais fortes da liga. Em segundo lugar, não menos importante, voltámos a avistar o carrossel ofensivo da época passada. É certo que o teste contra 10 ainda não permite tirar grandes conclusões, mas é sempre bom quando o estádio enche e os jogadores retribuem, neste caso com alguns momentos de levantar a bancada. É prematuro dizer que a equipa se apresenta ao mesmo nível da primeira volta 2022/2023, como é também cedo para prever até que ponto o plantel será capaz de superar a época passada, mas é bom sentir que o apetite dos jogadores está a aumentar.
Mas foi também um bom fim de semana para o Benfica porque, em apenas 24 horas, conseguiu encurtar a distância que o separa de Sporting e FC Porto. O Sporting empatou em Braga, num dos estádios mais difíceis para qualquer equipa de futebol em Portugal. Já o empate do FC Porto aconteceu na sua casa, um dos estádios mais difíceis para qualquer equipa de arbitragem portuguesa. São dois tipos de empate que definem a modalidade por cá. O futebol português é determinado por aqueles que enfrentam a pressão alta na saída com bola e por aqueles que semanalmente enfrentam a pressão de um treinador expulso 24 vezes ou do administrador da SAD que se levanta do banco para vociferar insultos. Se acham que o problema destes últimos se limita a um défice de competência, experimentem entrar em campo sabendo que vão arbitrar um jogo nestas condições, a não ser que o FC Porto esteja a ganhar ao longo dos 90 minutos, o que tem acontecido muito pouco.
É de notar a forma económica como encurtámos a distância face ao nosso adversário direto, precisando de menos 30 minutos este fim de semana para conseguir mais 2 pontos do que eles. A tendência não é desta jornada. Some-se o tempo extra dos 5 jogos oficiais desta época e o FC Porto passou mais 90 minutos em campo. Esta é uma equipa talhada para jogar prolongamentos como nenhuma outra na Europa, e o fenómeno começa a cativar audiências por esse mundo fora. Como seria de imaginar, o interesse gerado deve-se menos às exibições sofríveis e mais às peripécias de entretenimento que um jogo do FC Porto proporciona. Descrever os acontecimentos da noite de domingo como uma partida de futebol não será adequado. É outro tipo de espectáculo. As palavras nem sempre fazem justiça ao que vemos, mas chamemos-lhe, de ora em diante, circo.
O jogo realizado no Dragão, e as réplicas que se seguiram nas 24 horas seguintes, constituem um extraordinário cartão de visita do nosso futebol. É simultaneamente uma fotografia de onde nos encontramos e um flashback do exato sítio de onde viemos. Para se perceber a magnitude da coisa, coloco as coisas nestes termos: se um adepto de futebol português tivesse passado os últimos 30 anos em coma e desse por si a acordar no domingo, ter-se-ia questionado apenas sobre a remodelação do Estádio das Antas - ou porque é que um jogo do campeonato passara a ter prolongamento.
A boa notícia é que sabemos finalmente como internacionalizar o nosso futebol. Até ver, não conheço melhor estratégia. São milhões de visualizações nas redes sociais. É só repetir a seguinte fórmula todas as semanas: uma equipa vestida de azul e branco, teoricamente mais forte, privada do seu treinador orgulhosamente expulso dezenas de vezes, a jogar essencialmente pedras, põe os reforços todos em campo frente a um adversário teoricamente inferior, continua a jogar essencialmente pedras, e apanha-se subitamente a perder a 5 minutos do fim. Nada do que se passou até aqui interessa realmente. É agora que o espectáculo começa. E felizmente há pelo menos mais meia hora pela frente.
A partir daqui, só três dúvidas permanecem: em que minuto do tempo extra irá o FC Porto marcar o golo do empate ou da vitória, quem irá cavar esse penálti, e quão escandaloso será o penálti assinalado. Desengane-se quem acha que isto é pouco. Serão 30 minutos repletos de emoção. Quando não é Taremi a inventar uma nova forma de ludibriar os árbitros, eis que aparece um daqueles extremos virtuosos que dobram a língua enquanto explicam que o futebol é mesmo assim e há que saber criar estas oportunidades sempre o adversário nos toca com uma unha. Se nada disso resultar, o jogador do FC Porto faz como mandou Samuel Beckett e tenta outra vez, engana melhor, até que o árbitro da partida, torturado por esta persistente negação do futebol, muito provavelmente a lidar com uma emboscada organizada por jogadores de azul e branco, decidir que o melhor é assinalar um penálti qualquer, com VAR, sem VAR, que se lixe, nem que a luz falhe, isto se quiser continuar a exercer esta profissão. Já os jogadores, que têm acumulado ampla experiência nesta arte, sabem como funciona: se o árbitro apitar primeiro e perguntar ao VAR depois, o contacto será quase impossível de negar. Há quem treine ataque organizado, transições defensivas, lances de bola parada, jogadas de laboratório, e depois há quem pareça ter treino específico de mergulhos para a piscina, tirando partido de um protocolo absurdo que premeia o infrator. Mas, apesar de tudo isto, nunca me tinha ocorrido que pudéssemos ir além desta fronteira, até agora.
Confesso que nunca me tinha ocorrido, mas, imaginem que o penálti não é convertido. O que acontece então? Esta era uma pergunta para a qual não tínhamos resposta até este último domingo. Agora já sabemos qual é: o jogo só acaba quando o FC Porto marcar. Escusam de nos dizer quantos minutos extra teremos, porque essa medida exata não depende de nenhuma contabilidade discernível ou dos regulamentos que se aplicam às restantes equipas. E se mais minutos houver, quem sabe não se marca mais um penálti. Não enveredem pela matemática quando a disciplina praticada é a dramaturgia na sua forma tragicómica. Aqui chegados, teremos de suspender qualquer espécie de confiança naquilo que os nossos olhos, ou os do árbitro, veem. Só assim se consegue compreender efetivamente o ambiente asfixiante em que os árbitros são colocados nos jogos do FC Porto, ou a cortina de fumo que agora se segue com debates intermináveis sobre falhas de luz e tentativas risíveis de anular jogos que não foram capazes de ganhar nem com mais mais hora para o fazer.
É certo que os árbitros merecem críticas, mas merece muito mais crítica quem lidera a sua corporação e não os protege, quem, ao invés de encontrar formas de fomentar a competência dos árbitros, forma novas gerações de homens do apito que herdam os mesmos medos e condicionamentos dos anteriores. Aquilo que se passou no domingo é uma situação que não encontra termo de comparação no futebol português, e não é a discutir geradores que se vai resolver o problema. Podem persistir nessa manobra de diversão, mas são somos todos tolos.
Por um lado, compreendo quem exige critérios iguais para todos, como fez a comunicação do Benfica. Por outro, vejo nessas palavras uma certa ingenuidade, ou talvez excesso de boa fé. Por vezes, não havendo palavras bonitas para descrever o que vemos, é necessário recorrer a algumas palavras feias. É que os tais critérios só se podem aplicar a todos se estivermos a falar da mesma modalidade. Não sei exatamente o que é isto a que temos assistido, mas já não é bem futebol. Chamemos-lhe, de ora em diante, circo."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!