"Neste fim de semana, nos jornais e nos canais de notícias, fui obrigado, por dever profissional (ai se eu fosse livre, meu Deus, ai se eu fosse livre!...), a viver entre o congresso do PSD e a assembleia geral do Sporting. Nos dois conclaves, organizados, encenados e disciplinados, apenas, para consagrar os líderes das respectivas agremiações, encontrei , em graus diferentes, uma mesma doença, crónica: raiva .
A raiva afecta há anos as nossas sociedades e inundou o espaço público. Primeiro começou nas caixas de comentários dos sites de jornais, depois nas redes sociais.
Os cérebros bem pensantes das elites do nosso mundo cometeram uma primeira estupidez: eles tornaram relevante manifestações verbais de raiva na internet e toda a sua insanidade, toda a sua brutalidade, toda a sua inconsequência. Assustados e com o amor-próprio ferido pela falta de respeito da populaça pela sua suposta sabedoria, eles fizeram a raiva digital, anónima, passar do pobre estatuto catártico de frustrações individuais para o nível elevado de fenómeno social, real, com direito a tentativas de regulamentação, limitações à liberdade de expressão, e até criminalização, tudo acompanhado pelos óbvios anúncios de futuros cataclismos civilizacionais, caso não se conseguisse calar os inoportunos.
De umas meras bestas que diziam coisas bestiais na world wide web, os idiotas praticantes do insulto vazio passaram a ter a dignidade de serem vistos como líderes de opinião, gente indicadora de tendências sociais ocultas, comunicadores do pensamento inconfessado de uma maioria silenciosa.
Uns espertos viram na credibilização da raiva uma oportunidade financeira: o exercício profissionalizou-se e vanguardas organizadas passaram a promover ou a tentar destruir reputações pessoais, ideológicas, empresariais, institucionais, conforme a vontade do cliente ou a cor da militância.
Na fase seguinte deste processo aconteceu o impensável: a elite, a respeitável elite que tanto criticou a a rudeza da plebe que sabia utilizar o Facebook, decidiu juntar-se a ela: e foi ver jornalistas, juristas, economistas, médicos, professores, publicitários, empresários, políticos, engenheiros e muitos, muitos doutores a inundar as redes sociais para comentar, a golpes de palavrão, calúnia e boato, o mundinho que gira à volta dos seus interesses pessoais, profissionais ou políticos.
Em todo este processo o futebol foi um motor de reacção. A discussão de taberna da minha adolescência, regada a álcool, facciosismos e bofetada ocasional passou para a internet e, depois, em mais uma estupidez das elites, para as televisões, onde se institucionalizou, onde se "normalizou".
Ler, ver e ouvir jornalistas e políticos que, num dia, teorizam, circunspectos, sobre o futuro da Europa, a reforma da Segurança Social ou as medidas do Orçamento do Estado e, no dia seguinte, gritam descontrolados num debate futebolístico ou destilam clubismo cego num texto de jornal, manifestando mais paixão pelo fora--de-jogo do que pela vida dos portugueses, só podia dar mau resultado - e o pior não é a degradação da imagem das respectivas profissões, o pior é que a política passou a ser discutida como o futebol.
Do direito à liberdade de expressão, óbvio, que estes comentadores de política e futebol exercem; do direito à liberdade de expressão, óbvio, das pessoas que vão para as redes sociais dizer o que pensam, nasceu, perversamente, a raiva, que é antidemocrática.
A raiva é antidemocrática porque a raiva é cega e, por isso, impede que vejamos o que os outros têm para nos mostrar.
A raiva é antidemocrática porque é surda e, por isso, não deixa que ouçamos o que os outros têm para nos dizer. A raiva é antidemocrática porque é antissocial e, por isso, deixa-nos enquistados num grupo fechado de pessoas e ideias. A raiva é antidemocrática porque se alimenta do ódio e só quer destruir, eliminar, calar quem discorda de nós. A raiva é antidemocrática porque é alienante, não admite oposição, e por isso dá mãos livres e mais poder a quem espalha esta doença.
Esta raiva é o pão do autoritarismo moderno, uma ideia de exercício do poder que justifica palavras do líder do Sporting, Bruno de Carvalho, contra a imprensa e que motivaram, logo a seguir, agressões de adeptos do clube a jornalistas.
Esta raiva também a vi, noutro grau, no congresso do PSD quando foi, embora brevemente, assobiada a escolha para a vice-presidência do partido de Elina Fraga, que, por sua vez, deu sinais de padecer da mesma doença quando foi bastonária dos advogados e entendeu que uma decisão política de alteração do mapa judiciário, má, muito má mesmo, era motivo para uma queixa-crime contra todos os membros do governo de Passos e Portas: se cada má decisão política, onde não haja suspeitas de corrupção ou favorecimento, desse cadeia, que raio de exercício do poder poderíamos esperar?...
Por mim, pretendo combater esta doença, a raiva. Afinal, como as coisas estão, hoje em dia, ser-se revolucionário é ser-se bem educado."
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