"Em 1984, o Benfica tinha mais campeonatos sozinho do que os outros clubes todos juntos. Eu tnha 10 anos. Foi assim que o mundo me foi apresentado; era assim que eu esperava que ele se mantivesse. Nos 30 anos seguintes, entre 1984 e 2014, o Porto ganhou 20 campeonatos, mais do que os outros clubes todos juntos. O Benfica ganhou sete. Em 30 anos. Imaginem que vivem 30 anos da vossa vida com um desconforto permanente. Uma pedra no sapato. Todos os dias. Um terçolho que não passa. Uma chuva miudinha que dura três décadas. Uma pessoa quer existir sossegada e a pedra não deixa, o terçolho incomoda, a chuva irrita. O mundo, que era ameno, torna-se hostil. Não é uma hostilidade violenta, é só a sensação constante de que alguma coisa está errada, fora do sítio. A vida não é a mesma coisa.
Em 2004, numa altura em que já não era campeão há 10 anos, o Benfica ganhou a Taça. Fui para o Marquês com uma alegria embaraçada. Não conseguia conter a vontade de festejar - mas (ou por isso mesmo) tinha remorsos. Estávamos tão desesperados que havia gente com camisolas que diziam: 'Benfica, campeão da Taça de Portugal'. Era uma festa do Benfica, e no entanto a simples existência da festa demonstrava que o Benfica não era bem o Benfica. É um raciocínio complicado, acessível apenas a benfiquistas. Pessoas de outros credos, muito provavelmente, não o compreenderão.
Entretanto, o mundo foi-se consertando. Nos últimos oito anos, o Benfica ganhou mais campeoantos do que outros clubes todos juntos. Nos últimos quatro, ganhou todos. Cito a lista dos últimos clubes campeões nacionais: Benfica, Benfica, Benfica, Benfica. Foi monótono, repetitivo, previsível, chato. Foi uma maravilha. A única coisa que eu peço do mundo é que se mantenha aborrecido. Que o facto de o Benfica ganhar o campeonato se transforme outra vez numa ocorrência tão corriqueira que, no Telejornal, passe a ser noticiada mesmo antes do fim: 'Entretanto, pela décima terceira vez consecutiva, o Benfica sagrou-se campeão. Vamos à meteorologia para amanhã'. E que eu esteja cá para festejar tranquilamente, com um entusiasmado e orgulhoso bocejo."
Ricardo Araújo Pereira, in Visão
Longe vai o tempo dos erros históricos. ..
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