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sábado, 17 de dezembro de 2022

O meu nome é Luka


"Aveludado nos pés, totémico no quão representativo é na Croácia, a história de Luka Modrić, um futebolista indescritivelmente talentoso pelas tropelias com que doma uma bola, fá-lo ser um paradoxo. Também uma improbabilidade. Teve uma infância montanhosa, em criança perdia-se na contagem de tempo com o avô em Zaton Obrovacki, aldeia onde o pai do seu pai cuidava de ovelhas, cabras e galinhas, caçando nos tempos livres. Há fotografias de Luka ainda gente de palmo e meio, no meio da neve, agarrado a uma espingarda maior do que ele, ao lado do avô, de boina e casaco de caçador, ambos rodeados por neve.
Não muito longe dali, o sexagenário com quem partilha o nome foi morto por forças sérvias, varrido por uma ronda de metralhadora a poucas centenas de metros da porta de casa. Luka recorda-se do avô deitado num caixão aberto, de o pai lhe dizer para o beijar e fugir com a família para Zadar, junto ao mar, onde se diz que Ernest Hemingway viu o mais bonito fechar de persiana do sol. E Luka lembra-se do Hotel Kolovare, o improvisado centro de refugiados na cidade, onde jogava à bola no parque de estacionamento e a agarrava mal soassem as sirenes a urgir as pessoas a acudirem aos abrigos subterrâneos. “Aqueles assobios terríveis seguidos de uma explosão” também lhe estão na memória, quando o pai já tinha sido chamado a combater na Guerra da Independência da Croácia (1991-95).
Depois há as fotos de Modrić com uma bola de gomos brancos e pretos, das clássicas, com idade de ainda nem sequer dominar a fala. Dele fardado à militar, abraçado ao pai e ao tio quando cumpriu o serviço obrigatório. E hoje há as imagens das sobras, captadas por quem visita o país em paz e vai à aldeia onde Luka cresceu para fotografar a casa do avô em ruínas, com crateras de artilharia e e engolida por vegetação, ladeada por um sinal de “não se aproximem” devido ao perigo de minas. As pessoas lá acorrem, curiosas, julgando presenciar o lugar onde o pequeno dínamo de inspiração viveu, mas não, ele ali sobreviveu, dali ele escapou. Viver seria apenas mais tarde.
Pulando no tempo, a história do capitão da Croácia é como a de incontáveis outros croatas. Nascido em 1985, nunca chegou a pegar em armas, mas lutou contra a história que forjou um país e, diretamente, várias gerações. O Luka Modrić que ainda perdura com o seu ondulado e loiro cabelo, riscado ao meio desde sempre, veio da brutalidade da guerra e tantos anos depois ainda não mostrou aos três filhos a casa do avô, a essa tríade de descendência que saltou para o campo a abraçá-lo quando ele prevaleceu, uma vez mais e diante do Brasil, com a seleção que parece resistir mais do que joga.
Os croatas são paradoxais como Luka. Vêm de um país nem com quatro milhões de pessoas, pequeno em tamanho e em gente, embora repetente na proeza futebolística de estar, pelo segundo Mundial seguido, nas meias-finais, a tentar replicar a presença na final conseguida há quatro anos. Na Rússia, ultrapassaram dois prolongamentos com penáltis à sobremesa, no Catar já imitaram esse filme contra japoneses e brasileiros. Lá estavam os 37 anos de Modrić, dono de um dos QI’s futebolísticos mais avançados e proprietário dos necessários pés aveludados para o evidenciarem com uma bola, a batalhar e a lutar, a enganar-nos mais um pouco, fazendo crer que é possível passar a perna ao tempo.
Ele e o Lionel Messi, com os seus 35, colidem hoje na primeira meia-final do Mundial que será um forçado render da genialidade para alguém. O berço do argentino nem se aproxima de balas, armas ou disparos, o esqueleto da sua história é feito de anonimato, hormonas de crescimento e um crónico tímido em quem a família apostou o futuro do outro lado do Atlântico, longe das agruras de um rapaz croata que aos 10 anos, na escola, versou sobre granadas e a morte do avô quando o professor pediu aos alunos que escrevessem uma história. “Apesar de ainda ser muito pequeno, já vivi muito medo na minha vida”, redigiu no papel, como contou, há anos, ao “The Guardian”.
Luka Modrić já era vice-campeão mundial e vencedor da Bola de Ouro de 2018. Hoje ainda é o predominante médio ić a suster a resistência croata, à sua volta gravitam Brozović e Kovacić e atrás está Joško Gvardiol, prodígio defensivo que corta tudo o que o trio no miolo deixa passar. Terão de lidar com o derradeiro obstáculo para o reencontro com a proeza, a Argentina é uma seleção a urgir-se na superação em prol do derradeiro tango da sua lenda, mas o tanto que merecidamente dedicamos a louvar Messi tem roubado louros a Luka, um futebolista incrível, um tenor a cantar com os pés no meio de tantos batuques de percussão que vão resistindo a tudo.
Zvonimir Boban, o primeiro capitão da Croácia que alcançou as ‘meias em 1998, confessou ao “New York Times” não saber “como chegou à cultura” croata o facto de o povo sempre achar que são melhores do que qualquer outra seleção, seja qual for. A explicação pode estar em tantos terem sobrevivido a uma guerra e hoje quase todos viverem com memórias dela."

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