"Soa a algo injusto, desmedido até, não titular uma crónica com quem marcou três golos no jogo em questão, como Gonçalo Ramos o fez contra o Midtjylland. Mas quem desequilibrou com ginga, o assistiu nos dois primeiros e engatou o Benfica para a vitória (4-1) na primeira mão da 3.ª pré-eliminatória da Liga dos Campeões foi o brasileiro que tem no drible uma forma de vida e mostrou-o na estreia dos encarnados em partidas oficiais esta época
Se navegarmos no espaço-tempo como o conhecemos, o Midtjylland não nasceu ontem, noção que alterna drasticamente se aplicarmos os 23 anos da sua existência à ampulheta futebolística. Aí ficamos com um clube imberbe, de fraldas e a contar os dentes de leite no seu teclado, embora tão incrível quanto precoce nos feitos logrados tendo como base uma cidade com poucas migalhas mais do que 50 mil habitantes: em 2015 ganhou o campeonato dinamarquês pela primeira vez, em 2018 e 2020 repetiu-o, mas nem a rapidez de chegada aos canecos não é o que levou a curiosidade a farejar o clube.
A equipa que entra no Estádio da Luz é um produto da aplicação de arrojo, vanguardismo e uma pitada de ‘porque não?’ ao futebol. Nos primórdios da década anterior, o pequenote e humilde Midtjylland já contratava especialistas em lançamentos laterais, peritos em trabalhar com os jogadores a sua forma de encostar o pé à bola, pessoas para esmiuçarem estatísticas e ferramentas de pesquisa para selecionar uma primeira lista de jogadores potencialmente contratáveis segundo parâmetros meramente numéricos. Hábitos muito “Moneyball”, a fílmica história de quem se rendeu aos números para fazer uma equipa de beisebol, comuns a tudo quanto é clube grande atual, mas que então eram raros.
Muito mais para um clube vindo dos confins da Dinamarca, com tantas consoantes seguidas que suplica pelo uso do copy + paste quando o queremos nomear e sobre o qual vale a pena fazer um resumo muito resumido de onde veio para, no fundo, reforçar que a valia do Midtjylland é ter bem definido o que quer e como o quer fazer. É o mesmo que enche as costelas do alemão sereno e de pé, à frente do banco do Benfica, a assistir ao jogo com um ângulo reto feito com os braços e uma mão no queixo a dar-lhe pose de pensador.
O Benfica joga para ser o que Roger Schmidt pretende descaradamente que seja, desde os primeiros jogos de pré-época, tentando cair em cima dos dinamarqueses com uma mescla de pressão alta e imediata após cada bola perdida, todos os jogadores a precipitarem-se em função da bola com uma mescla de esbaforido e organizado a que os adversários da forma mais prática que traziam preparada - optando por um passe longo, aéreo e direto para Sory Kaba captar e através das receções do grandalhão avançado tornarem inútil a subida de peças constante dos encarnados.
A evasão do Midtjylland ao rasgo mais visível do treinador alemão do Benfica juntou-se à preocupação dos dinamarqueses em recuar a equipa para trás da linha da bola, aglomerando jogadores ao centro, tentando bloquear passes para Rafa e limitar as opções de Florentino e Enzo para fora. Sendo a bola e a iniciativa do Benfica, durante mais de 20 minutos o jogo é uma caldeirada de ressaltos, jogadas de pouca dura e passes verticais errados, respeitando a cadência para a frente que Roger Schmidt injetou na equipa. Ainda esta certa falta de estabilidade na partida se mantinha quando David Neres, à direita e perante o lateral adversário que lhe tapou o pé esquerdo, simulou um cruzamento à entrada da área, fê-lo virar a cara, usou a sola para quietar a bola e arrancou pelo lado o oposto, acelerando até à linha de onde cruzou para a cabeça (17’) de Gonçalo Ramos fazer o 1-0.
Mesmo sem ligar muitas jogadas pelo centro do campo que o Midtjylland congestionava, a passagem do tempo como o conhecemos expôs as diferenças que existem, por cabeça e par de pés, entre os jogadores. A lentidão de tomada de decisão, aliada às falhas de receções, fizeram a ladroagem vinda do sufoco de pressão de Florentino e Enzo aparecer cada vez mais e isso, depois, deixou o Benfica explorar os posicionamentos que já tem calcados no cimento. Se no primeiro golo foi Gilberto, o lateral, a fixar um adversário, na área, para o impedir de dar cobertura, no 2-0 já David Neres esperou colado à linha pela bola com que voltou a arrancar para o seu ‘pior’ lado, enganar o defesa e voltar a cruzar de pé direito (33’) para a cabeça do avançado português bisar.
Não conseguindo, a preceito, desequilibrar com pequenos toques e passes pelo centro que ligassem dois jogadores e encontrassem um terceiro livre, o Benfica teve e terá a ginga de Neres por fora, tê-la é uma bênção e já Caetano Veloso cantava que desde que o samba é samba é assim, do Brasil caem doutorados em drible das árvores e o samba também é o pai do prazer que é ter um extremo capaz de sair para o lado de ambos os pés sem grandes problemas. E já depois de ele voltar a rematar, de Rafa cortar um mau passe de um defesa e querer oferecer outro golo a Ramos e de Grimaldo estourar um míssil na ressaca de um canto, o Benfica fez o 3-0 com outra impressão digital da influência do novo treinador.
Num canto, acumulou cinco jogadores na pequena área, dois perto do batedor João Mário e, portanto, um total de sete a criarem um engodo geral para a bola ser passada pelo ar em direção a Enzo Fernández, o argentino que a bateu de primeira à entrada do retângulo (40’). A contar com os jogos de pré-época, foi o oitavo golo vindo de um canto ou livre, sintoma de magicações pensadas no Seixal, local para trabalhar o tipo de futebol já correu espevitado e sem trela na segunda parte.
Porque o Midtjylland, além de alguns jogadores ausentes, teve os ossos chocalhados pelas diferenças como um esqueleto disposto numa sala de aula do antigo Estudo do Meio, para a criançada ir lá mexer e abanar. Estando a perder por muitos e necessitando de encurtar distâncias, a vontade dos dinamarqueses quererem confiar mais no passe curto em vez da escapatória longa colocou-os que nem figos para a competente pressão alta do Benfica.
Os tentáculos de Florentino no momento da recuperação de bolas surgiu, Enzo ladeou-o a cobrir as linhas de passe disponíveis ao desespero dos adversários e o prolongado tempo em que o Benfica já deliberava a bola no meio-campo dinamarquês permitiu à equipa ter os jogadores nos sítios certos para apertarem a rede assim que algo na jogada corresse pior. O hat-trick de Gonçalo Ramos cedo foi ameaçado (47’), um remate de João Mário passou perto da baliza (49’) e o primeiro ainda esperou que o médio fixasse um adversário para depois ver o guarda-redes Ólafsson esticar a perna (57’) para lhe bloquear um golo na cara. A Luz ganhou aquela aura de ser uma questão de tempo.
Na demonstração em curso daquilo a que o Benfica quer jogar com Roger Schmidt ainda se viu a correria consertada de Rafa e David Neres em contra-ataque, acabando a escapa a um canto defensivo com um remate bruto do brasileiro (59’) contra a barra antes a permeabilidade do Midtjylland ficar exposta num lançamento lateral: o mais pequeno dos encarnados recebeu a bola na área, tocou para Gonçalo Ramos e o avançado, utilizador de uma receção orientada que tira corpos da frente, teve o seu terceiro golo (61’) e o que já enchia a barriga à equipa à falta de meia hora por jogar.
Um tempo em que o Benfica esmoreceu compreensivelmente por este encontro, apesar de a sério, ainda ser quase de pré-época, as pernas ainda latejam e os bofes ficarão de fora para alguns. O ritmo serenou para quem acendia agora o lume da competição e espevitou-se nos que na Luz fizeram o sexto jogo oficial da temporada, agora caçadores de um prejuízo já gordo. Numa jogada em que Paulinho foi abalroado por Morato já depois de rematar, apitou-se o penálti que Pione Sisto, o mais talentoso do Midtjylland, picou (78’) à Panenka para ser a gota sem anúncio que deu uma pitada de mentira ao resultado.
O 4-1 é simpático para os dinamarqueses, um poço de lisonjaria se o parcial focado for o de remates acertados na baliza, esse 12-1 guia também ao que foi o desperdício do Benfica nas redondezas do alvo - ainda teve um livre de Grimaldo e um remate na área de Henrique Araújo, este para a bola rasar um poste - quando o seu fulgor rockeiro, de pressão constante, passes verticais e gente entremear-se contra-movimentos constantes encostou o adversário ao estado em que uma equipa fica quando se vê bastante inferior a quem tem tão claro como quer jogar - a simplesmente resistir como pode."
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