"No outro dia fui ao café mas não cumpri o ritual apressado de beber a bica ao balcão. Reparem como já quase ninguém pede “uma bica”. Quando o fazem, sobretudo os mais novos, é por aquele desejo de distinção que, nos últimos anos, fez nascer tantos Martins e Constanças e recuperar para a vida urbana artigos esquecidos da existência rural dos antepassados. Dizer “bica” é, pois, usar um arcaísmo que nobilita e, em simultâneo, uma censura ao novo-riquismo que, ao adoptar o universal “café”, pretendeu apagar os tempos comuns de pobreza, pré-União Europeia. Bem, mas lá me sentei a uma mesa e fiz o que tanto gosto de fazer quando a ocasião se proporciona: ouvir as conversas dos outros.
Na mesa ao lado, dois senhores de provecta idade (desconheço qual a regra do acordo, se este “c” também deveria desaparecer para ficarmos com velhos de proveta idade) saltavam alegremente de tema em tema, com uma liberdade, leveza e dobradiças coloquiais de fazer inveja a qualquer cronista. Sobre todos os assuntos tinham opiniões vincadas, da estreia de Miguel Oliveira no campeonato principal de motas à possibilidade de uma vitória de Conan Osíris na Eurovisão. Notem como pulavam de nenúfar em nenúfar: “este ano [falavam de Oliveira] a música é outra” e, inevitavelmente, seguiu-se uma análise geo-melo-política sobre os possíveis efeitos de uma vitória do “árabe” Osíris na Terra Prometida. Isto não é conversa, é bailado, é Nureyev num pires.
No fim, enquanto eu remexia o fundo da chávena da minha bica, anteviam o jogo do Benfica com o Belenenses (isto foi no outro fim de semana). Um dos senhores, presumível benfiquista, dizia que estava no papo e que a derrota na primeira volta resultara mais dos lapsos vitorianos do que da argúcia de Silas. O outro, ou benfiquista cético (uma contradição nos termos) ou portista esperançoso, afiançava: “sem o Gabriel estão quilhados!”
É difícil afirmar, sem margem para dúvidas, que o Benfica perdeu dois pontos com o Belenenses por causa da ausência do médio brasileiro. A verdade é que os perdeu e Gabriel não estava lá. Com ele em campo será que os cérebros de Vlachodimos e Rúben Dias também se teriam ausentado momentaneamente para as terras longínquas do “golpe de vista” e do “atraso de vida”? Quem sabe? O que se sabe é que, com Gabriel em campo, a música é outra, para citar o senhor do café. Toca bombo nas recuperações e violino nos passes, longos ou curtos, música ora celestial, ora marcial para os ouvidos dos companheiros que, com ele por perto, parecem mais virtuosos, mais concentrados, mais jogadores.
Gabriel é o mais influente que um jogador pode ser numa equipa sem praticamente marcar golos ou fazer assistências. Com a camisola do Benfica marcou um golo na taça e fez uma assistência na Liga, números que já só se admitem num guarda-redes ou num delegado ao jogo. Porém, se não estiver lá, alguma coisa acontece no coração da equipa, menos capaz de bombear sangue, mais propensa a taquicardias e a outros desacertos cardíacos.
É um pacemaker ambulante, o estabilizador de uma equipa que, em certos momentos, ainda guarda na memória muscular a vertigem descerebrada de Jesus e a contemporização, menos racional do que se possa pensar, de Vitória.
Com tudo isto, duas coisas me intrigam: o mistério do que ia na cabeça do ex-treinador do Benfica para desperdiçar os talentos de Gabriel (já para não falar na ostracização, não fosse ele grego, de Andreas Samaris) e a superior clarividência de um velhote num modesto café na Quinta da Lomba. Jürgen Habermas teorizou acerca da importância dos cafés na criação de uma esfera pública que, em última análise, possibilitou a emergência do liberalismo.
Hoje, com nespressos e deltas q, não se pode exigir tanto da nossa precária cultura de café, até porque a esfera pública se transformou no poliedro das redes (anti) sociais. Mas se alguns treinadores tirassem uma horinha por dia para visitar os cafés de bairro que ainda sobrevivem talvez aprendessem algumas coisas básicas sobre motociclismo, o festival da eurovisão e a importância cardiovascular de ter Gabriel no meio-campo."
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