"Escrevo com risco, num dia de estreia oficial que pode alterar os pressupostos, mas é justo dizer que foi não só positiva como prometedora a exibição de Portugal frente à Croácia, um vice-campeão mundial quase na máxima força. E não foi positiva apenas pelas razões óbvias – a ausência de Ronaldo, uma série de jovens em estreia ou perto disso, um jogo particular em início de época – mas pelo que se observou do jogo propriamente dito, que é sempre o que mais conta. Depois de dois anos numa lógica de segurança defensiva com espreita do contra-ataque e expectativa de pingos de génio, que para muitos foi a base do título de Campeão da Europa mas cuja receita apenas minimamente provou na Rússia, chegou a hora de mudar. E trata-se mais que mudar de jogadores, aproveitando inúmeros talentos emergentes, mas de buscar também um jogar que possa vir a dar conforto táctico a esses que serão fatalmente os principais nomes do futuro.
No Algarve, viu-se uma selecção competente no momento defensivo, naquilo que já é uma imagem de marca dos últimos anos mas que – com Rúben Dias ao lado de Pepe – se permitiu subir linhas, pressionar mais acima, dificultar mais cedo a construção do jogo do rival. A Croácia teve dificuldades em criar porque Portugal não deixou que o talento axadrezado respirasse nas imediações da área de Patrício. Ainda assim, os melhores sinais surgiram no momento ofensivo, sobretudo na primeira parte. Portugal manteve espaço para o ataque rápido, favorecido pelas acelerações de Bruma e nas desmarcações de André Silva, mas soube também associar-se, ter mais tempo a bola e rodá-la entre os três corredores, com uma qualidade superlativa à direita, onde Bernardo Silva e João Cancelo (que cresceram juntos) se podem complementar como poucos no mundo, tendo na inteligência de Pizzi (maturidade para definir ritmos mas também talento para criar) um complemento perfeito. Portugal pareceu resgatar, em alguns momentos, o futebol que é a sua identidade histórica, o de acarinhar a bola, de gostar de a trocar entre os seus, de procurara o caminho para as redes contrárias ora com vertigem ora com paciência.
Quanto ao talento disponível, a constatação do óbvio: não falta. Ver João Cancelo, Rúben Dias ou Rúben Neves entre as primeiras opções só pode fazer sentido e mais sentido fará juntar-lhes mais vezes uma série de outros talentos, como Bruma (bem lembrado e que bem apareceu!) Gelson Martins, Gonçalo Guedes, Bruno Fernandes ou Rony Lopes, e aproveitar, em função do momento que viva, tanta outra gente de qualidade indiscutível: Pizzi, Renato Sanches, Sérgio Oliveira, João Mário, André Gomes. E ainda há Nelson Semedo e Raphael Guerreiro, Cédric e Mário Rui, necessariamente o sábio Moutinho e o fiável Adrien, mais o que restar da arte de Quaresma e Nani, que para Fernando Santos (e muito bem) a idade não é critério.
Ainda assim, nunca em muitos anos foi tanta a fartura de talento nascente, que os João Félix, Dalot, Gedson, Xadas e Diogo Leite também já aí estão a bater à porta. E como se não bastasse, toda esta qualidade pode assentar sobre a base indiscutível dos últimos anos (numa expressão gasta, a “espinha dorsal”) que começa em Rui Patrício, se prolonga em Pepe e William e concretiza no talento único de Bernardo e na bandeira lendária que é Ronaldo. Nem de propósito, a Itália, adversário desta segunda-feira em Lisboa, vê o copo meio vazio. Ou vazio de vez. O Corriere dello Sport enchia a primeira página deste domingo com um editorial longo, decorrente de um título repleto de amargura: “Refundámo-nos ou afundámo-nos?”. No antetítulo, a frase certeira que também resume muito: “já não produzimos campeões, é preciso mudar o futebol italiano”. Mancini, hoje treinador, um desses velhos génios que não se repetem como outrora (como Baggio, Zola, Del Piero, Totti, só para lembrar os que a memória guarda frescos), tenta resgatar o talento louco de Balotelli, antecipar a explosão do Chiesa filho (que é craque), fazer despertar finalmente golos de azul escuro em Immobille, mas nada disso ilude o essencial: o futebol do país dos resultados – tantas vezes elogiado pelo que ganhava em função de um estilo defensivo, especulativo e cínico, como se fosse esse o caminho mais curto para as vitórias – vive a crise mais grave que há no futebol, a da falta de talentos verdadeiros. Não o desperdice quem os tem às resmas. Portugal, por exemplo."
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