"Chamava-se Raul Figueiredo. Esteve apenas três épocas no Benfica. Mas ganhou o Campeonato de Portugal pelo Olhanense, apontando um golo na final contra o FC Porto. Aos 38 anos, um cancro levou-o cedo demais.
Diz quem o viu. Eu não o vi, claro, o tempo não deixou. Sou de outras eras, décadas inteiras de diferença. Raul de Figueiredo: chamaram-lhe O Tamanqueiro.
Um cancro levou-o e nem sequer era o tempo dos cancros, como hoje.
'Era um extraordinário jogador! Leve, elástico, verdadeiro malabarista da bola. Dava gosto em campo. Quem há hoje que se lhe possa comparar?', dizia o seu obituário datado de 2 de Dezembro de 1941.
Foi aquilo que se chamava, na altura, operário conserveiro. Bela profissão para que se dedicava a enlatar sardinhas e cavalas.
Saltou de clube para clube: Vitória de Setúbal, Olhanense, outra vez Vitória, Benfica, Académico do Porto, Sporting de Braga, União de Coimbra...
17 vezes internacional.
Esteve nos Jogos Olímpicos de Amesterdão - essa célebre saga de 1928 quando Portugal chegou aos quartos-de-final para ser eliminado pelo Egipto.
Em Olhão vendeu peixe, foi motorista de carrinhas que levavam material para a lota, tomou conta de um táxi.
E ganhou o Campeonato de Portugal. Vitória na final sobre o FC Porto: 4-2. Jogava com Malcate e Fausto Peres, com Gralho, Cassiano, Montenegro e Júlio Costa. Marcou o segundo golo dos algarvios nesse jogo: de penalty. Seria o 2-2. Em seguida, a cavalgada olhanense no Campo Grande.
Um nome entre nomes
No Benfica viria a encontrar gente como Eugénio Salvador (famoso como actor), Jesus Crespo, Mário de Carvalho, Jorge Tavares, Evaristo Silva, Vítor Gonçalves, pai do companheiro Vasco da muralha de aço. E um treinador que o marcou: Ribeiro dos Reis.
Já falei aqui recentemente de Ribeiro dos Reis. Uma figura! Uma figura!, diria Otto Lara de Resende.
'Hoje, ao amanhecer, Raul Figueiredo, cansado de sofrer, exalou o último suspiro', continuava o obituário. Na Rua Tomás da Anunciação, ali a Campo d'Ourique.
Não se falava muito de futebol nos matutinos e vespertinos desse ano de 1941.
Uma vaca tresmalhada no Cais da Rocha do Conde d'Óbidos merecia mais espaço do que o funeral de um jogador de futebol, por muito querido que ele fosse do seu público. Até porque a aventura era contada com espalhafato: 'Distinguiram-se na lide um guarda-freio da Carris a um preto dum vapor que foram derrubados pela vaca tendo sofrido algumas escoriações pelo corpo'.
Essa do preto dum vapor tem que se diga, mas não é este o local certo...
Talvez tenham faltado a Tamanqueiro mais anos de Benfica para entrar naquele âmbito universal da popularidade sem fronteiras.
Depois teria um filho: o Figueiredo, do Belenenses.
Pouco desfrutou de ser pai. No dia da sua morte, o garoto tinha apenas 11 anos.
No dia 23 de Fevereiro de 1930 está no Porto: 'Capital do Norte, Fátima milagrosa do foot-ball português onde até hoje ainda não conhecemos a derrota. Uma fila interminável de automóveis serpenteava pela cidade a levar ao campo de jogos do Ameal a animação e o entusiasmo de vintena de milhares de portugueses'.
Mais uma vez Portugal não perderia na Fátima do futebol: bateu a França por 2-0.
Tamanqueiro tem no braço, orgulhoso, a braçadeira de capitão. Mereceu-a por inteiro. É um homem de princípios, um atleta exemplar, um jogador de indiscutível categoria.
Seria a última vez que vestia a camisola das cinco quinas azuis ao peito.
A alcunha de Tamanqueiro herdara-a do pai, sapateiro de profissão, especialista em meias-solas.
Atlético, trabalhador, jogador de ir-dar-e-levar, como dizia Carlos Pinhão, Raul Figueiredo foi um daqueles homens que os deuses preferem. Por isso, levam-nos cedo. Aos 38 anos, o cancro derrota-o sem piedade.
Há jogos que nem os mais valentes conseguem vencer.
Tamanqueiro era valente. Valente para lá dos elogios.
Continuará valente na planície da eterna saudades..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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