"Pode dizer-se que a primeira Supertaça se disputou no dia da inauguração do Estádio Nacional, no dia 10 de Junho de 1944, entre o Sporting campeão nacional e o Benfica vencedor da Taça de Portugal. Chamou-se Taça Império.
Lisboa, 10 de Junho de 1944. «Lisboa descobriu hoje, nesta apoteose que foi a inauguração da cidade dos desportos, um sentido único. Pela auto-estrada que corta Monsanto - 'Estádio'. Pela via marginal, desencantando em cada viragem do carro um panorama azul do Tejo - 'Estádio'.
A cidade despovoou-se. Ao meio-dia já não se via uma janela, um estabelecimento abertos. A grande circulação fazia-se rápida, intensa, cautelosa, vazando sangue humano sobre o gigantesco monumento. Dir-se-ia mesmo que, entre os restos de duas aldeias pastoris, Linda-a-Velha e Linda-a-Pastora, no eixo do velho Jamor que desapareceu, subitamente, envergonhado, se abrira, instantaneamente, uma cratera humana».
A cratera humana era o Estádio Nacional que nesse dia se inaugurava. É um momento único, histórico.
As pernas dos jornalistas enfunam como velas de galeão do Raposão e do Dr. Topsius, da Imperial Alemanha, da «Relíquia».
Duvidam? Leiam mais um pouco.
«E depois, de súbito, numa admirável arquitectura cenográfica, a parábola do campo, com os 23 sectores, 25 quilómetros de bancadas - do Cais do Sodré a Cascais em extensão - e a sua tribuna de honra, de um voo helénico, com as suas colunas rasgando o azul, tendo à frente as cadeiras de espaldar vermelho, onde não tarda que se sentem o Chefe de Estado e do Governo. À frente dessa proa rendilhada, condizendo com o rubro dos estofos, um linda cercadura de sardinheiras - numa nota de cor ardente e voluptuosa. O horizonte rasga-se sobre a Praça da Maratona, que tem como último plano o anilado batido de sol, do Tejo em dia de festa. A toda a volta das arquibancadas, nos montes, vêem-se as falanges da Mocidade Portuguesa, numa teoria de bandeiras que, no momento exacto, ocupará as escadas radiais do Estádio numa massa imponente de fardas e de estandartes».
Pois é, muito Estado Novo, benza-a-Deus, mas fruto da época, a prosa que aqui recupero, com vossa licença.
Às 16h30 chegou o Dr. Salazar e respectivos membros de Governo. Às 16h55 o General Carmona. Tudo como manda o protocolo.
Seguem-se exibições de ginástica, de atletismo, desfiles de desportistas de clubes de todo o país, representando todas as modalidades.
Tudo impecável! De truz! De estadão!
E, finalmente, às 16h30, em ponto, o desafio entre Sporting e Benfica, respectivamente vencedores do campeonato nacional e da Taça de Portugal.
Era aqui que eu queria chegar.
Esta foi, pode dizer-se com conforto, a primeira das Supertaças. Havia, aliás, o plano de tornar anual este encontro entre vencedores de campeonato e Taça, mas a ideia não foi avante.
Repetir-se-ia, excepcionalmente, vinte anos mais tarde, em 1964, mas falarei disso para a semana, fiquemo-nos, para já, pelo novinho em folha Estádio Nacional.
Nessa tarde em que cerca de oito mil atletas pisaram o relvado e a pista de atletismo do Jamor, os jogadores de Benfica e Sporting tiveram direito a representar o papel principal.
E coube a Fernando Peyroteo a honra de marcar o primeiro golo da história do recinto.
Mas, apresentem-se os artistas:
Árbitro: Vieira da Costa, do Porto. Auxiliares: Carlos Canuto e Álvaro Santos.
SPORTING: - Azevedo, Carlos Cardoso e Manuel Marques; Canário, Barrosa e Eliseu; Mourão, João da Cruz, Peyroteo, Marques e Albano.
BENFICA - Martins; César e Carvalho; Jacinto, Albino e Francisco Ferreira; Espírito Santo, Arsénio, Julinho, Teixeira e Rogério «Pipi».
Quem lê a crónica de Ribeiro dos Reis sobre o desenrolar dos acontecimentos, não lhe encontra motivos para enormes entusiasmos. Os elogios são escassos. Sobretudo no que respeita à qualidade técnica da peleja, já que quanto ao esforço dispendido não há rebuço.
Reclamava o distinto técnico e jornalista da distância a que o público ficava do relvado, deixando os jogadores alheios aos gritos de incentivo.
De início, Azevedo foi chamado a intervir perante a codícia dos avançados encarnados. Por pouco tempo, todavia. A lentidão tinha tomado conta da tarde que caía e amolentara jogadores de ambos os conjuntos.
Veio a segunda parte já que a primeira não deixara saudades.
O Estádio era rico, sumptuoso, desenhado pelo arquitecto Jacobetty Rosa à boa maneira das obras fundamentais do regime, copiando o estilo megalómano dos Nacionais Socialistas alemães.
«Salazar promete! Salazar cumpre!», lia-se em cartazes e panfletos espalhados pelo meio da multidão.
Malhas que o império tece...
Aos 15 minutos da segunda parte, golo de Peyroteo!
Cabe ao Benfica lutar pela honra e pela posse da Taça Império, atribuída pela Federação Portuguesa de Futebol ao vencedor. E que bela taça era!
Custou, mas foi. A partir dos 60 minutos, são os encarnados quem mandam definitivamente nos acontecimentos. Atacam com energia o seu adversário que recua e se sujeita a sofrer o empate.
O 1-1 é da autoria de Espírito Santo, saltando para além da linha defensiva leonina e ludibriando a tentativa de o deixarem em «off-side».
Haverá prolongamento.
Escreve Ribeiro dos Reis: «Aos dois minutos do primeiro quarto de hora, Peyroteo aumentou a marca do seu grupo para 2-1. Trocados os campos, coube a vez a Eliseu de fazer 3-1, aproveitando inteligentemente um incompreensível movimento de recuo da defesa do Benfica. Foi um 'goal' consentido por falta de atenção sobre aquele jogador do Sporting que por estar magoado passara para extremo esquerdo.
O Benfica tentou ainda recuperar terreno e, a cinco minutos do fim, o seu avançado Júilio aproveitou uma descida para atenuar a derrota para 2-3.
As duas grandes figuras do encontro foram os guarda-redes Azevedo e Martins. Pode dizer-se até que só eles estiveram verdadeiramente à altura do grandes acontecimento, mostrando classe aparte. Azevedo, sobretudo, teve defesas magníficas, devendo-lhe o Sporting muito da vitória, bem como aos dois defesas, ambos muito seguros, especialmente Marques, que marcou muito bem o avançado-centro adversário».
Passavam já fez horas da noite. Caíra a escuridão sobre o Vale do Jamor.
Salazar já tinha saído..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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