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terça-feira, 22 de outubro de 2024

Nadal, não deixes o ténis, meu, fica connosco


"Quando nos calha na rifa debitar palavras nesta newsletter, o ponteiro da bússola que determina o que escrever nem sempre obedece a um magnetismo claro, decidido à primeira.
Esta semana, eu me confesso, a fita mental ponderou fixar o tema em Jürgen Klopp, porque não matutar acerca das nefastas consequências que uma decisão de carreira do empático treinador apetrechado de milhões na conta bancária graças à voragem do mais e mais do futebol, mas percecionado como guarda-costas do lado romântico da modalidade, está a ter na imagem pública do alemão por ter aceitado ir aconselhar o projeto de futebol da Red Bull; ou, ainda mais na berra, escancarar as incongruências de Gianni Infantino, o suíço presidente na FIFA que pode bem ter as intenções guardadas no lugar certo e, ao contrário de Klopp, tem o lastro público de ser o mauzão do futebol, um Drácula a mercantilizar um pouco mais o futebol cada vez que desce do seu castelo.
Nenhuma hipótese pareceu, lamento, tão fulcral quando contraposta ao ocaso de uma lenda, à luz que finda na vela de cera de Rafael Nadal, pelo que assim se deu a minha rendição ao espanhol e ao que ele foi, essa memória suplanta o que hoje resta do tenista, nem que seja pelo respeito às últimas vezes em que se pode versar sobre a sua versão jogador.
Este fim de semana, a mexer-se com a anca por arames e um pé cronicamente calçado em dor, preso pela ferrugem dos 38 anos, pesado num corpo feito já não apenas de músculo e potência, pontuado por uma cabeça descabelada, vimos talvez o último jogo de singulares de Nadal e logo com Novak Djokovic do outro lado da rede, uma coincidência de lendas proporcionada pela vénia de ambos ao dinheiro da Arábia Saudita.
Denotou a Lídia Paralta Gomes pertinentemente que as derradeiras faíscas entre as raquetes de dois mitos não deveriam aparecer assim, num torneio plástico e supérfluo, de relevância artificial. Deveríamos ter ficado com as que eles deixaram no verão em Paris, na terra batida de Roland-Garros, onde espanhol e sérvio se cruzaram nos Jogos Olímpicos e a inclemência do tempo, grande destrinçador de capacidades, mostrou mais uma vez a severidade com que atingiu Nadal. Custa horrores ao canhoto ser a locomotiva indomável de outrora, aliás, é-lhe impossível ser tal encarnação durante mais do que um breve fogacho, uma pancada estonteante caso a bola lhe vier a jeito. Um jogo do ténis tem hoje de se aprontar aos limitados conformes do espanhol em vez de se ver subjugado à sua vontade como foi hábito nas últimas quase duas décadas.
Na encenação de Riade, entre Nadal e Djokovic houve um court a albergar as suas 647 semanas conjuntas enquanto números 1 do mundo, os 46 Grand Slams conquistados, os 76 torneios do Masters 1000 e o rasto das 60 partidas oficiais que disputaram, um mausoléu estatístico às suas carreiras que o Six Kings Slam, pomposo nome de batismo dado ao postiço evento, nunca conseguiria estar à altura de celebrar. E resumir só com números a história do espanhol, ou da epopeia entre ambos, seria uma desonra.
Nenhum faz jus aos detalhes, como a ávida brincadeira de Novak, em 2006, no balneário de Roland-Garros, onde pediu que lhes pintassem a caneta um “Vamos Nole” na parte de trás das sapatilhas para emular o “Vamos Rafa” que a Nike desenhara nos calcantes do touro na flor da idade, que sairia vencedor desse primeiro duelo na sua terra batida, porque já era dele, só poderia ser quando um dos templos do ténis tem hoje à porta, para boa-vindar quem lá chegue, uma estátua do espanhol, um dos poucos desportistas que ainda no ativo pôde competir numa arena com um tributo esculpido em sua memória. E bem, porque os 14 títulos de Nadal em Paris são das mais incríveis façanhas do desporto, sintoma de quem andou a desbaratar a nossa noção de majestoso.
Aquilo com que ‘Rafa’ preencheu duas décadas foi a banalização do extraordinário, um mutante do além a consumar-se entre humanos enquanto outras duas anomalias da natureza foram também átomos invisíveis a coincidirem no mesmo palheiro. Se Nadal ficará como o mais dominador numa superfície - cada um teve a sua, o quintal de Djokovic está na Austrália e Federer é o tratador da relva de Wimbledon -, o sérvio perdurará como o dono do único rácio vitorioso no duelo com os rivais - 31-29 sobre o espanhol, 27-23 contra Roger - e o suíço é quem mais fez durar a sua supremacia no ténis, a certo período, ao encadear 10 finais consecutivas de torneios do Grand Slam.
Por isto e devido a tudo o que é incontável por ser intangível, haja os recordes que houver, vimos Roger a dar mão a Rafael, há dois anos, ambos a chorarem na despedida do suíço, e agora constatámos a prontidão elogiosa de Novak face ao maior rival, humilde a prestar o seu tributo ao espanhol que tanto o antagonizou, tal como Federer, por a figura de ambos arrancar maior carinho dos corações dos fãs de ténis: o sérvio pediu-lhe, por favor, “não deixes o ténis, meu, fica connosco mais um bocado”. A grandiosidade de todos liquidificou-se em combustível para cada um, que foram mordiscando mutuamente os calcanhares enquanto fugiam às dentadas de algum deles. Um ciclo vicioso em que Nadal chamuscou raquetes com o seu fogo, não houve uma gota de suor derramada por Federer sem elegância e Djokovic desconjuntou-os com a mecânica do seu gelo.
E nós viciámo-nos no trio de lendas, baixámos a guarda perante o lado aditivo de apreciar uma modalidade elevada a um nível colossal, eu pelo menos também admito que toldei o julgamento durante anos e acreditei que o ténis era aquilo, passerelle constante de grandeza, e que estes três modelos seriam eternos. Não haverá mais jogos a doer entre eles e o fim definitivo de Rafael Nadal será daqui por um mês, em Málaga, na certamente emotiva final da Taça Davis para a qual o espanhol agendou o seu adeus. Não há antídoto para o feitiço do tempo e depois de ‘Rafa’ restará Djokovic, sozinho na sua luta contra o relógio. Muito haveremos de escrever quando chegar o dia do sérvio, porque todos o merecem. O vazio que ficará connosco encarregar-se-á de o provar."

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