"«Vi jovens com braços e pernas amputadas, mas nada se compara à visão de mente amputada. Para isto não há próteses». Al Pacino em ‘Perfume de Mulher’
Trânsito parado junto à Ponte 25 de Abril. Um condutor com automóvel grande procura meter-se num espaço onde eu duvido que coubesse um Smart. Fiquei a apreciar o prato, esperando um qualquer ato de ilusionismo, mas a física foi mais forte que a magia e o atrevido chocou de lado com outro veículo que estava parado. Por sorte, a física a cinco quilómetros por hora não dá para grandes estragos.
O candidato a ilusionista, percebendo que estão duas mulheres de meia idade no outro veículo, sai do automóvel e insulta-as com a indignação do macho latino que ainda acredita que o lugar delas é na cozinha. Acreditou que as duas mulheres cairiam em si e pediriam desculpa pela ousadia de terem saído de casa, mas mediu mal os insultos à condição feminina e não contou que aquelas duas mulheres há muito tivessem posto no caixote do lixo o calendário do ano da graça de 1234. Saíram ambas do automóvel e brindaram-no com um belo par de estalos! E ficou a saber-se que o homem tinha mais jeito para os 100 metros fuga do que para o ilusionismo... Por momentos, naquele trânsito, deixei de ouvir buzinadelas e só ouvi gargalhadas. Não consegui agradecer às senhoras.
Ninguém consegue calar Gigi Becali?
Lembrei-me deste incidente que testemunhei há alguns anos ao ler a notícia de mais um destempero de Gigi Becali, o presidente do FCSB — antigo Steaua de Bucareste, da Roménia —, cujo único favor que nos presta é lembrar-nos que em matéria civilizacional temos ainda um longo caminho a percorrer. A prova de que todo o ser humano é útil, se não servir para mais nada pode servir para mau exemplo…
Gigi Becali não gostou do trabalho do VAR no jogo com o Botosani, do campeonato romeno. O FCSB até o venceu, mas terminou o jogo com nove jogadores devido a duas expulsões. E culpou o VAR, no caso Cristina Trandafir.
«Quando colocas uma mulher no VAR e é ela quem diz que é cartão vermelho… Como pode uma mulher aproximar-se de um homem para tomar decisões? Está tudo maluco?», atirou Gigi Becali. Eu aqui tenho de concordar… O mundo só pode estar maluco por ainda termos de lidar com personagens como Gigo Becali! A prova que só dois tipos de homem lidam mal com decisões tomadas por mulheres: os misóginos e os incompetentes.
[Pena não ter ficado com o contacto das duas senhoras da ponte 25 de Abril...]
Se tivesse ficado por aqui, Gigi Becali já teria feito de si má figura o suficiente, mas como o homem há muito perdeu a noção do que é o ridículo — hoje estou a usar muitos eufemismos — decidiu dizer mais: «O jogo é arbitrado por homens. E ela, coitada, não percebe. Se ela tivesse inteligência… mas é mulher. Como pode uma mulher dizer a um homem que ele é burro e ela é que é inteligente?».
Uma boa pergunta… E como até um relógio parado tem razão duas vezes por dia, de facto uma mulher não pode dizer a um homem que é um burro. Está provado cientificamente que o burro é um animal inteligente e, acima de tudo, de grande caráter.
Gigi Becali gastou imenso latim para resumir tudo numa frase: «Se é mulher… fique em casa.» Para completar o ramalhete, só faltou mesmo acrescentar que a mulher só deve dirigir-se a um homem em três situações: perguntar se quer uma cerveja; informar que o almoço está pronto; reiterar que… não lhe dói a cabeça!
Mas atenção, Gigi Becali garante que ama as mulheres. Que daria a vida pela esposa e filhas. Perdoem-me o humor negro, mas então porque é que não dá?
E se o VAR fosse negro?
Vasculhando um pouco, percebo que Gigi Becali é o cardápio completo da ementa dos horrores. Misógino, homofóbico, racista, xenófobo, intolerante.
Sabendo isto, vamos só fazer um pequeno exercício: em vez de uma mulher no VAR estava um árbitro negro. Peguem em tudo o que disse Gigi Becali e substituam a palavra mulher pela palavra negro e troquem a conclusão «se é mulher, fique em casa» por «se é negro, que fique na cubata…». A reação das pessoas seria a mesma?
No segundo caso até a FIFA já se teria metido ao barulho e as sanções seriam tão duras quanto justas. Ouviríamos muitos discursos, justos, contra o racismo. Mas no caso de Cristina Trandafir sinto tudo muito calmo.
O meu ponto é que, em matéria de civilização, não há valores de primeira e de segunda. Não podemos deixar a nossa capacidade de indignação depender da moda ou da capacidade dos discriminados fazerem ouvir o justo protesto contra a discriminação. Todas as formas de discriminação merecem igual nível de indignação.
Se o Gigi Becali acredita que o lugar da mulher é em casa; que lugar do negro é numa cubata em África; ou que o lugar do homossexual é num hospital psiquiátrico até se converter; eu tenho de gritar bem alto que o lugar do Gigi Becali pode ser em muitos sítios, menos o de convívio em sociedade… Se pensarmos bem, o mal da sociedade está menos nos energúmenos que dizem barbaridades e mais no silêncio dos homens justos.
'Homem Lendo Uma Carta a Uma Mulher'
Tal como não gosto de me deitar sem antes tentar resolver mal entendidos ou situações desagradáveis, não gosto de terminar uma conversa com notas tristes e negativas. Por isso, volto a olhar para uma obra prima do pintor Pieter de Hooch, que entre 1663 e 1665 pintou Homem Lendo Uma Carta A Uma Mulher. Como em qualquer forma de arte, cada um interpreta à sua maneira.
Eu vejo um homem submisso, gentil, cuidadoso, lendo mensagens de amor ou contando novidades… Mas o que me impressiona mais é o semblante da mulher. Sereno, embevecido, maternal, poderoso. Mas também algo condescendente. Porque a mulher mede-nos bem à distância. A a nossa sorte é a mulher ser generosa o suficiente para aceitar pagar por nós bem mais do que aquilo que realmente valemos."
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