"Diz-se que o futebol está mais burocrático e culpa-se a tática, meia-verdade apenas, e o resto mentira, que mesmo a meia-verdade é filha de uma pergunta mentirosa, de que tática falamos, afinal? Só se for da que despreza o talento, da que quer trajar o criativo com manga de alpaca e faz dos artistas espécie em extinção em cada onze, que lhes grita a exigir transpiração ao primeiro dia de menor inspiração. Não é boa tática, ou nem sequer é bem tática, apenas uma representação do medo.
Gosto de agitadores de verdade, dos que vão para cima e viram o jogo como quem baralha as peças de um xadrez burocrático, não se lhes fica indiferente, são ondas revoltas em águas tranquilas que não há bons surfistas com mar flat, improvisadores de guitarra que melhoram as canções, molduras em quadros que seriam despidos sem elas, não lhes peçam obras de arte todos os dias, isso nem Dalí nem Warhol, deixem-nos pintar sempre, todavia, esboço um dia, espanto no outro, borrão pontualmente, o erro é o preço maior da liberdade, em todas as artes e nosso jogo, e na nossa vida.
Quero sempre um Neymar, mesmo que caia e se rebole, não gosto do que pensa e diz, delicio-me com o que faz, o jogo pede mais desses, por isso quero sempre ver Mahrez e Antony, Di María e Dembelé, Ziyech e Almiron, Mitoma e Kubo, por cá David Neres e Marcus Edwards, os jogos com eles ficam mais bonitos, os corajosos nunca se escondem da bola, antes se exibem e fazem do supérfluo coisa boa, só sabem seguir a direito por caminho sinuoso e nunca ignoram que o percurso mais curto entre dois pontos pode ser uma reta mas o mais fascinante será sempre o que tem curvas, como num rali, travam e derrapam, e avançam de novo, conhecem o destino mas fazem do caminho a felicidade, temos de os invejar. E desfrutar.
Na mesma linha de arte, foi já neste século que nasceram os que mais encantam por estes dias, como o espantoso homem do ano em Itália, Kvicha Kvaratskhelia, bem mais difícil de pronunciar que de admirar, filho de um antigo internacional do Azerbaijão mas já o melhor jogador de sempre da Geórgia, acima de Chivadze, Kipiani, Shengelia, nomes eternos da última grande geração no país, já lá vão 40 anos, Kvicha tem só 21, mas este será para sempre o Nápoles dele, conseguiu o que não lograram Cavani, Higuaín, Hamsik, Mertens ou Insigne, antes dele só o maior de todos, urbi et orbi, na cidade e talvez no mundo. Já lhe chamam Kvaradona, e não há homenagem mais bonita.
E que bom que este é o ano de Bukayo Saka e de Vinícius Júnior, herdeiros de Neymar mas também de Garrincha e Robben, do Burrito Ortega e do Magico Gonzalez (o génio salvadorenho impossível, vão a correr espantar-se no Youtube), que se vingam dos cínicos e do destino, dos cínicos que dizem admirar arte mas enchem a boca de números e lhes pedem a repetição regular de gestos que são únicos, e mais ainda do destino que não os poupa aos insultos de imbecis que os desmerecem pela cor da pele. Mas eles vingam-se: Saka é o melhor da Premier até agora, Vini o mais decisivo do Real, feiticeiros do drible a que acrescentaram o golo, enganam por fora e finalizam por dentro, vezes seguidas, alteram as dimensões do relvado consoante a necessidade do momento, tanto o alargam na finta como afunilam no remate, satisfazem os românticos na ginga e os pragmáticos na eficácia. E ganham ao preconceito de goleada, que é o melhor de tudo."
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