"A quantidade de jogos de futebol durante a semana transformou em domingo quase todos os dias, mas domingo ainda é domingo, então um dia santo para os nostálgicos futeboleiros. Por um acaso, este bendito domingo que passou começou com leituras de crónicas escritas por Sócrates Brasileiro, um futebolista genial dos anos 80 que era também uma “metamorfose ambulante”, um soldado contra a ditadura militar no Brasil. A Democracia Corinthiana deixou rasto. O que pensaria ele de um Campeonato do Mundo no Catar? Enfim, talvez tirasse o chapéu ao que vai fazer a seleção neerlandesa.
A televisão matou a estrela do livro, somente naqueles momentos, graças ao PSG-Auxerre. “Que desinteressante será sem Messi, Neymar e Mbappé…”. Mas, para surpresa do queixo que se separou do resto do rosto, os três artistas jogaram mesmo, assim como Carlos Soler, Achraf Hakimi e os nossos Danilo e Nuno Mendes. Todos eles convocados para o Mundial que começava em meros sete dias. A dignidade do futebolista é realmente uma coisa admirável. Ninguém tirou o pé ou interveio com o travão de mão puxado. Viu-se Lionel, cercado, numa biblioteca de dois metros quadrados a polir espaços. Neymar pegou no berlinde como quem resolve o mundo. Kylian correu desenfreado como habituou as testemunhas do costume, driblando, perdendo bolas e correndo atrás de seguida. Nuno Mendes foi todos os melhores laterais esquerdos da história durante 90 minutos e Danilo, austero e comprometido, andou nas bulhas que lhe diziam respeito. Golearam, 5-0. Admirável.
Estavam, quem sabe, protegidos por um manto de rezas dos compatriotas espalhados pelo mundo, que os pouparam ao fado de jogadores como Diogo Jota, Pedro Neto, Paul Pogba, N’Golo Kante, Ben Chilwell, Reece James, Arthur Melo, Giovani lo Celso, Marco Reus, Timo Werner e tantos outros, que se lesionaram e desfalcam as seleções nacionais no torneio que se jogará entre 20 de novembro e 18 de dezembro. Vendo os vídeos das reações às convocatórias, é impossível não perceber que jogar um Mundial é, para os futebolistas, o que está acima de qualquer céu.
Parece que os 26 convocados de Portugal, escolhidos por um vago e pouco dado a explicações Fernando Santos, passaram pelos pingos da chuva neste derradeiro e aflitivo fim de semana. Os eleitos reúnem-se esta segunda-feira e, na quinta-feira (18h45, RTP1), têm mais um teste à carapaça e resistência física, castigadíssimas pelo comprimir do calendário, num jogo contra a Nigéria, em Alvalade. O avião para Doha, no Catar, levanta voo na sexta-feira. Tudo certo, então, certo? Não.
Cristiano Ronaldo, o capitão da seleção portuguesa, decidiu dar uma entrevista a Piers Morgan, na “TalkTV”, onde arrasou Manchester United, treinador e ex-treinador. É o assunto do momento no mundo inteiro, pelo menos nos lugares em que se olha para o futebol como a coisa mais importante entre as coisas menos importantes. A entrevista estava há muito prometida e é publicada num momento em que o 7 não terá de se deparar com ninguém do clube, agora que começam os trabalhos na seleção, talvez piscando o olho ao mercado de inverno. Tresanda a improvável o regresso ao outrora Teatro dos Sonhos.
Como escreve o Diogo Pombo na Tribuna Expresso, “dito o que foi dito por Cristiano Ronaldo na véspera de o futebol carregar no botão de pause para as atenções se centrarem no Mundial, é provável que os holofotes se mantenham focados nele, ainda mais do que o costume”. Ou seja, “com conferências de imprensa quase diárias e face ao aparecimento pouco frequente do jogador nesses momentos de pergunta-resposta, os jogadores da seleção nacional que forem surgindo serão, porventura, questionados sobre o tema Ronaldo face ao timing das palavras do capitão”. É uma distração, é ruído. Teme-se, assim, que o Mundial seja uma coisa pessoal para o futebolista, uma espécie de ego trip. E isto sem falar de como encaixaram as críticas os colegas de clube Diogo Dalot e Bruno Fernandes, o primeiro jogador da seleção a abrir decentemente a boca contra o Catar 2022: “Sabemos o que tem surgido sobre pessoas que morreram nos estádios. Não estamos felizes”.
O timing de Ronaldo é doloroso. Por tudo, pelo tom, por colocar tanto em causa num momento em que o clube até ganhou nove dos últimos 12 jogos e sobretudo porque vem aí um Campeonato do Mundo, o último dele supostamente. Soa tudo a uma penosa e triste solidão. Mais que isso, o que custa mesmo testemunhar é a forma como alguém que, para muitos, se senta na mesa dos maiores futebolistas de todos os tempos se está a despedir do futebol. Afinal, foi esperança e o que pertence ao inevitável e fabuloso durante um tempo que parecia eterno. Cristiano ajudou-nos a todos a sonhar um bocadinho mais. Agora, mais do que nunca, o futebolista tem nas mãos e nos pés a maneira como nos vamos recordar dele, ou pelo menos de como se despediu de nós."
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