"Se há inevitabilidade que me incomoda é a poeira da memória e a sua indiferença, não a entendo, haverá neurocientistas com mente dedicada a estudar as manigâncias de outras mentes que o saibam explicar. Nunca serão os porquês extraídos de neurónios e massas cinzentas a soprarem todas as partículas de frustração que sinto por me lembrar das tardes de verão em que me sentava no chão da sala, mais perto da televisão, pernas cruzadas pelo espanto, sem me recordar do que o meu avô ia dizendo para seduzir os meus ouvidos, tanto quanto os olhos eram surripiados pela admiração do que estávamos a ver.
Quando a televisão ainda era uma caixa, a pessoa que genuinamente gostava de desporto e não apenas de me ver praticar desporto chegava lá a casa, sentava-se no cadeirão que lhe amparava os joelhos carcomidos por cirurgias e plantava-me a semente do ciclismo. Eram os verões da Volta a França, de Marco Pantani, Jan Ullrich, Alexander Vinokourov, Carlos Sastre e de Lance Armstrong, antes de o mundo cair com a fraqueza nos braços do americano que se encharcou em doping durante tantos anos, mas não aqueles, os das tardes a ver ciclismo com o meu avô.
Não lhe sei precisar as palavras, sei apenas que me explicava, com a voz grave e cheia de paciência, estarmos a presenciar homens em plena suportação do extraordinário. O meu avô vendia-o como das coisas mais admiráveis ao alcance de um humano — fazer mexer uma gerigonça de duas rodas apenas com a força das pernas e, com ela, escalar montanhas a pique. Há lugares onde a natureza não quis ter pessoas e esses sítios ficam nos picos do mundo, de outra forma não seriam assim, gargantuescos na ascensão e dilapidadores de corpos.
Há muitos anos que se foi a voz que era o meu desporto, felizmente ainda tivemos tempo para me dar, sobretudo para me ensinar, um gosto que é impossível de perder. Mas, sumido ele e aparecido o escândalo que foi saber que Armstrong era o imperador dos batoteiros, confesso ter virado um derrotado do ciclismo. Acabaram as tardes de Volta a França, a Itália ou a Espanha, o acompanhamento de genuíno interesse passou a interesseirice obrigatória devido à profissão, duas coisas que só voltaram a estar juntas quando um certo português apareceu.
Desconhecia João Almeida quando se adornou de rosa durante 15 dias, o ano passado. Foram duas semanas do Giro a ser liderado por um rapaz a pedalar no ano de estreia enquanto profissional e o inglês, idioma engenhoso, tem uma palavra para o que isto poderia ser: um fluke. Um acaso, as estrelas combinadas entre si para se alinharem. Mas não, o ciclista de A-dos-Francos voltou a Itália para acabar no 6.º lugar depois do 4.º de 2020, depois foi aos Jogos Olímpicos para uma 16.ª posição no contrarrelógio e no que restava deste verão ganhou duas voltas, primeiro à Polónia e, este sábado, ao Luxemburgo.
Portugal teve muitos ciclistas, o meu avô enchia-me o depósito do ideário da vida sobre dois pedais com histórias do que vira Joaquim Agostinho, o maior deles todos, fazer em França. O país continuará a ter ciclistas depois de João Almeida, mais almas cairão nesse caldeirão de dor suportada e sofrimento acumulado entre homem e máquina em que ele é o motor, o ano passado ouvi o ciclista que é dos arrabaldes das Caldas da Rainha dizer que "a dor física é tolerável, mas a mental é complicada", que quando termina a dos músculos e começa a do cérebro é que o corpo se ressente — "aí é que temos de ir além dos limites".
Agora que conquistou o Luxemburgo, o português disse não ser um super-herói, lamentando-se por não ser "possível responder a toda a gente" no alcatrão quando as pernas viram brasas de carvão e berram estridentemente para que lhes seja concedido algum descanso. João Almeida só tem 23 anos, na escala da vida é uma ninharia, mas estará opulento de saber o quão sofre um ciclista para pedalar até onde ele já foi, ainda por cima tendo os dotes de trepador já evidenciados e a queda pelas subidas íngremes que até fazem carros ficarem com os bofes de fora.
Não tive forma de perguntar a este já super-ciclista — que, no próximo domingo, voltará à estrada nos Mundiais de ciclismo — sobre o que leva alguém a abraçar tal sofrimento, a querer sofrê-lo e a prosperar com a dor, tão pouco tenho o meu avô por cá para me explicar as nuances de algo tão humano como só ele era capaz de me fazer entender, por isso questionei a única alma que conheço e sei que experimentou a sério o equilíbrio da vida em duas finas rodas. Sorte a minha e, arrisco, também a vossa, por ele ser também uma pessoa que tem um ralenti de clareza na escrita para que possamos, mesmo só com ligeiros arranhões, tentar perceber o que é pedalar sabendo que a estrada nos condena a uma provação dolorosa:
Há um prazer muito específico que é certamente irracional e disfuncional mas viciante e alucinante e que por isso mesmo é um prazer contraditório, porque é um prazer cheio de dor, dor que sabe bem quando a dor devia saber só a dor, achar que a dor tem sabor a mau ou sabor a bom é complexificá-la e romantizá-la em vão porque a dor é uma perda de tempo perante a possibilidade do prazer, o prazer esse sim deve ser aclamado nos seus sabores e escalas diferentes, por exemplo: podemos ter o prazer-medíocre e o prazer-satisfaz e o prazer-bom e o prazer-excelente e porque não o superprazer, eis uma escala possível de prazer, cada um de nós terá a sua escala e nunca é perda de tempo viver e sentir esses escalões do prazer.
Peço perdão por usar "escalões" que é linguagem de IRS mas isto do ciclismo, que é disto que aqui falo embora não o pareça, isto do ciclismo tem a sua contabilidade também, é feito de dois pedais e uma forqueta e ainda um guiador e também uma corrente, é feito ainda de manípulos de velocidades e de múltiplas combinações de andamentos, 52x11 ou 42x23, esta é matemática do ciclista, os ciclistas falam com estes números entre eles e não tente perceber isto porque ninguém entende mesmo os ciclistas, a boca deles sabe-lhes a sangue no final de um contra-relógio de 50 quilómetros sob temperaturas de 40.ºC ou enquanto sobem uma montanha com inclinações de 20% ou por centos maiores, ninguém os entende no sacrifício apocalíptico deles, nem eles porventura se entendem a eles mesmos quando se tentam superar continuamente nesse ato extravagante mas definitivamente poético que é serem os motores de si próprios, as pernas a fazer de gasolina e o coração a bombear óleo da melhor qualidade.
A BMW ou a Tesla têm excelentes veículos mas nenhum é tão corajoso nem sexy como os veículos de calção de licra e camisola justa que atingem 190 ou 195 pulsações por minuto — não porque querem, mas porque precisam, afinal é um prazer irracional e disfuncional mas viciante e alucinante: por mais absurda que seja a dor, e é porque dói tanto, o ciclismo é um exercício contínuo de autossuperação e por isso um exercício contínuo de amor à vida, é rejeitar que há limites ao que podemos fazer e conquistar, no fundo o ciclismo é a prática dessa belíssima ilusão humana que é a crença de que não há limites para o que podemos conquistar, portanto o ciclismo é uma metáfora do progresso e isso é superprazer."
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