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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O Teatro dos Sonhos deverá ser rebatizado como Teatro dos Sonos


"Comecemos pela literatura. Ou arqueologia. E um bocadinho de má-língua. Em 1979, António Lobo Antunes entrou na literatura portuguesa a pés juntos, dentro e fora dos relvados… perdão, dos livros. Numa das primeiras entrevistas que deu, disse que os escritores portugueses daquela época – os outros – faziam uma coisa sem sangue, sem olhar e sem gesto: “é uma sei lá, pá, é uma merda que anda à roda.” Se isto não é uma das mais belas definições de uma literatura nacional, não sei o que é.
Ora bem. Por falar em excrementos, lembrei-me do “shit on a stick”. Em castelhano, “mierda colgada de un palo”, para honrar o inventor da expressão, o poeta argentino, antigo ponta de lança, filósofo desportivo e Richelieu de Florentino Pérez, Jorge Valdano. A expressão foi usada para se referir aos jogos entre o Chelsea de Mourinho e o Liverpool de Rafa Benítez que eram na altura o equivalente tático ao Rumble in the Jungle, a uma corrida Prost vs. Senna, aos grandes duelos entre Garry Kasparov e Anatoly Karpov. (Se eu mandasse na Netflix, recomendava a todos os milhões de espetadores da série Gambito de Dama aqueles confrontos tensos e indigestos entre Benítez e Mourinho, treinadores que em três anos ganharam duas Ligas dos Campeões e duas Taças Uefa entre si.)
Valdano, que sempre foi esse estranho centauro dois terços lírico, um terço pragmático, depois de assistir a outra hora e meia de tortura do futebol escolástico praticado pelas equipas dos dois treinadores disse que, em Anfield, se alguém puser merda pendurada num pau haverá sempre quem considere isso uma obra de arte, embora seja apenas merda num pau, e que Mourinho e Benítez estavam, a bem dizer, a dar uma de artistas modernos e a chatear os burgueses e o povo obrigando toda a gente a procurar virtudes naquelas longas batalhas táticas e estáticas.
Nos últimos anos, sobretudo com a ascensão de Klopp e Guardiola e o ritmo imparável das equipas da Premier League – aquilo já nem é intensidade, são espasmos, distúrbios neurológicos, em que os jogadores já não pensam o jogo, são pensados por ele, meros peões de uma velocidade imposta externamente – julgava-se que tinha chegado ao fim a era das disputas cerebrais em que o objetivo era acabar o jogo com menos golos sofridos do que o adversário mesmo que o resultado fosse zero a zero. 
Puro engano. No sábado assistimos a uma reedição daqueles duelos no mais improvável dos cenários, Old Trafford, o Teatro dos Sonhos, que deverá ser rebatizado Teatro dos Sonos, e no mais improvável dos jogos, um derby de Manchester, outrora uma garantia de emoção, tackles e correrias com o tempero de uma ou outra expulsão. No final do jogo, o inflamável Roy Keane, antigo talhante dos relvados e agora comentador, lamentou que os jogadores das duas equipas acabassem aos abraços em vez de fazerem o que lhes competia que era jogar à bola e partir pernas. Qual quê! Foram todos muito bem-comportados e mantiveram-se a uma distância de segurança das balizas de forma a não causar danos desnecessários. A certa altura, o comentador da "Sport TV" disse que tinham sido dados 14 toques nas grandes áreas e eu pensei que a acusação devia ser verdadeira, mas que os jogadores estavam nitidamente arrependidos de terem dado tantos.
Este espetáculo desmoralizador teve uma agravante. Antigamente, embalados pela cantilena do nível tático, assistíamos aos jogos entre Mourinho e Benítez com aquele espanto dos rústicos a olhar para um quadro de Mondrian ou a ouvir Béla Bartók, impressionados pela esmagadora inteligência que lhes é servida e esmagados pela impressão de que alguma coisa lhes está a escapar. Diziam-nos que aqueles jogos eram, afinal, exercícios confucianos ou sun-tzunianos de sabedoria estratégica e nós acreditávamos. Depois Valdano explicou-nos o que era aquilo e agora já não nos enganam com tanta facilidade.
Daí que ao ver o derby de Manchester não me tenha sentido nada inteligente, nem espantado com a argúcia dos treinadores, apenas mortalmente aborrecido. Jogos tão aborrecidos deveriam ser jogados a um ritmo baixo, hipnótico. Não. Ao contrário de Roy Keane, eu vi os jogadores a correrem, a empenharem-se, a lutarem como se aquilo fosse a sério. Só que não era. Era somente um aparelho em alta rotação, sofisticadíssimo e que não servia para nada: uma merda num pau a andar à roda, para citar dois senhores que não ganharam o prémio Nobel."

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