"Uma vez estive frente a frente com Darren Anderton. Os mais novos não fazem ideia de quem foi este jogador e a verdade é que eu também não me lembro lá muito bem dele em campo. Mas já o tinha visto um número suficiente de vezes na televisão para o reconhecer quando ele atestou o depósito do Lotus, do Lamborghini ou do Vauxhall numa movimentada estação de serviço a caminho de Londres onde eu trabalhei como repositor de loja durante um mês e meio, nas férias de verão de 1996.
Anderton tinha feito parte da selecção inglesa que, naquele ano, em solo pátrio, cantou o regresso do futebol a casa só para ver os seus belos sonhos destruídos, como habitualmente, por um grupo de alemães insensíveis, passe o pleonasmo. Quando voltei a Portugal, além de umas histórias bizarras que envolviam imigrantes portugueses e revistas pornográficas, o relato de um encontro com o sr. Pedro, meu vizinho lá no bairro e com quem me cruzei por acaso enquanto ele picava melancolicamente o lixo à volta da estação de serviço, e um quase incêndio em casa da minha tia quando eu e a minha avó tentámos grelhar peixe para fazer um calulu, não me cansei de dizer aos meus amigos que tinha visto Darren Anderton em carne e osso.
Ninguém ficou impressionado. Vejam, se eu tivesse visto um Paul Gascoigne, um Alan Shearer ou um Steve McManaman isso ter-me-ia valido a glória eterna junto dos meus amigos. Mas eu tinha tido a sorte macaca de encontrar Darren Anderton, um bom jogador obscuro, tão obscuro quanto um bom jogador, internacional pelo seu país, pode ser. Um pouco acima na escala “andertoniana” de fama estava Gary Neville. A fama devia-se não tanto às suas brilhantes capacidades futebolísticas, mas ao facto de vir acoplado ao irmão, Phil Neville. Eram os irmãos Neville e isso tornava-os identificáveis e basicamente indistinguíveis um do outro, como os irmãos Metralha ou os sobrinhos do Pato Donald. É esse o problema dos irmãos célebres. O que ganham em fama conjunta, perdem em individualidade
Isto para dizer que se tivesse visto Gary Neville a encher o depósito talvez tivesse tido mais sorte. Hoje, por exemplo, poderia ter começado esta crónica assim: “Uma vez estive frente a frente com Gary Neville, o homem que definiu David Luiz da maneira mais exata possível.” Creio que o leitor, se conhece a frase, concordará comigo. Neville, após abandonar o futebol e antes de enveredar por uma estranhíssima carreira de treinador, passou pelo comentariado futebolístico-televisivo. Foi nessas funções que disse que David Luiz, na altura a jogar no Chelsea, jogava como um boneco de Playstation comandado por uma criança de dez anos.
Vejam bem. Eu não me lembro de nenhuma jogada de Gary Neville em campo, de nenhum golo ou assistência, de rigorosamente nada que ele tenha feito num jogo de futebol (calculo que, como qualquer inglês, a dada altura da carreira tenha falhado um penálti decisivo numa grande competição), mas aquela frase – reveladora, transparente, definitiva – diz tudo sobre a inteligência do homem. Ele viu a essência de David Luiz de chuteiras, caneleiras e cabeleira: um boneco comandado por uma criança de dez anos. E o mais incrível é que, ao fim de oito ou nove anos, a frase não perdeu nenhuma actualidade e pertinência. David Luiz continua o mesmo, embora neste momento represente um clube onde a sua presença faz mais sentido: o Arsenal também é gerido como se fosse um clube de fantasia nas mãos de uma criança de dez anos.
Dizia eu que David Luiz continua o mesmo, talvez ligeiramente mais lento, mas sem nenhuma da ponderação, da ratice, da sabedoria esquinada que tende a vir com a idade. Tão depressa dá uma de Beckenbauer, a subir imperialmente pelo campo com a bola dominada rumo à baliza adversária, como logo a seguir falha o mais simples dos cortes ou faz um passe de trinta metros para o vazio como se metade do cérebro se tivesse apagado no segundo em que a chuteira acerta na bola. Tão depressa varre a grande área com a elegância e pacifismo de um Carlos Gamarra como incorre numa daquelas faltas à Pepe que lhe poderia valer uma acusação de tentativa de homicídio se fosse feita na rua. Às vezes karateca, coragem de Bruce Lee, outras vezes personagem de slapstick, a tropeçar nos calções caídos até ao tornozelo, assim é David Luiz.
Segundo a imprensa especializada, David Luiz anda a piscar o olho ao Benfica. É preciso ter cuidado com namoros destes. Em Inglaterra, o central brasileiro ganha 140 mil euros por semana. Mesmo que viesse ganhar um bocadinho menos no Benfica, era capaz de ser mais do que o clube pode pagar neste momento a um jogador com a idade crística de 33 anos e um cadastro de Barrabás, não obstante a sua quota de milagres.
Atenção, não sou ingrato. Apesar de todos os erros, do descontrolo emocional típico do fiel que acabou de sair do culto pentecostal das quintas-feiras, adoro David Luiz. Deixo as contas para os contabilistas. Há nele uma verdade qualquer, qualquer coisa genuína, que nos faz perdoar-lhe os erros.
O Terceiro Anel tem os seus patinhos feios e tem os seus cisnes. David Luiz é um cisne. Pode borrar tudo, pode, em certos momentos, ser mais desajeitado e deselegante do que um pato coxo, mas, caramba, não há ali um grama de mentira, de dissimulação. Dizem que as crianças não mentem. David Luiz também não. É uma criança grande comandada por uma criança de dez anos. Deixem-no vir antes que cresça e vá dar palpites num estúdio de televisão."
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