"«A beleza e a fealdade, o brilho ou pouco brilho de uma coisa, não entram nas contas da balança»
Sobre as decisões com peso ou sem ele
1. A balança quando trabalha não distingue ouro nem prata.
- Que bonito.
- Sim?
- A balança é uma máquina, modesta sim, nada de vanguardismos... não é propriamente uma máquina de última geração... mas mesmo assim tem importância, e muita.
- Também me parece.
- É uma máquina que sente pesos: que diz, por via dos números: isto é pesado, isto é leve.
- Diz? Como? Podem os números falar?
- Sim, claro. Falam e muito. Podes traduzir os números em linguagem. Uma tradução entre duas áreas aparentemente bem distintas, palavras e números, mas sim, é possível.
- Pois então...?
- Sim?
- Voltemos à frase.
- A balança quando trabalha não distingue ouro nem prata.
- Isso mesmo: ela está obcecada pelo peso que as coisas exercem sobre o mundo. A balança como se fosse a mão que sente o peso, mão cega que não distingue se o peso é belo ou feio, valioso ou não.
- A beleza e a fealdade, o brilho ou pouco brilho de uma coisa não entram nas contas da balança.
- Parece-me muito bem: a balança pesa, mas é cega.
- O peso de uma coisa é indiferente à beleza ou à fealdade dessa coisa.
- O peso de uma coisa é indiferente à importância ou insignificância dessa coisa.
- O peso é cego.
- Isso.
- A balança. Justa, portanto. Como um juiz ou um árbitro.
- Exacto.
- Poderíamos imaginar um mundo em que o valor das coisas dependesse exclusivamente do seu peso.
- Parece-me bem e justo.
- E haveria duas hipóteses...
- Duas?
- Sim quanto maior peso mais valioso, ou...
- Ou?
- Ou: quanto menor peso mais valioso.
- Ok.
- O peso brutamontes como a grande referência. Por exemplo, adorar as montanhas.
- Sim.
- E a grande leveza como grande referência. Alguém, ou uma comunidade, que adorasse nuvens, por exemplo.
- Duas comunidades bem diferentes.
- Os adoradores de nuvens.
- Adoram o que é leve.
- E os adoradores das montanhas.
- Adoram o que é pesado.
- Os adoradores daquilo que tem muito peso e por isso não se mexe.
- E os adoradores daquilo que é muitíssimo leve e por isso nunca está parado.
- Isso.
- Os adoradores da montanha e do peso: são os adoradores da calma.
- Sim.
- E os adoradores das nuvens e da leveza: os adoradores da inquietude.
- Dois tipos de seres humanos.
- Exactamente.
- Quase duas espécies humanas distintas.
Os homens com muitas ideias.
2. A boa cabeça nunca faltam chapéus.
- Isso.
- Os chapéus são múltiplos e variados.
- Eu diria...
- Diga.
- Que só não há chapéus para quem não tem cabeça.
- Isso é um facto.
- Mas não falamos da cabeça fisicamente, da cabeça concreta.
- Nada disso, claro.
- Falamos, sim, das ideias de um sujeito.
- Isso.
- Um sujeito com boas ideias, com boa cabeça, encontra sempre uma solução.
- Exacto.
- Uma boa solução, ou seja... um chapéu.
- À boa cabeça nunca faltam chapéus.
- À boa cabeça nunca faltam soluções.
- Só uma?~
- Uma. Duas, no máximo.
- Uma cabeça só com uma solução.
- Pobre cabeça. Ideia fixa.
- Uma cabeça onde só cabe um tipo de chapéu.
- Só um. Só um, só um.
- Pois."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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