"1984. Primeiro português a ganhar uma medalha olímpica no atletismo. Leitão, o rapaz de Espinho, essa cidade onde as ruas têm números em vez de nomes, que morte resolveu levar num dia estúpido, demasiado cedo.
Há uma imagem marcante, e eu gosto de imagens.
António Leitão corre com a facilidade de um homem sem pesos na consciência. Tem o dorsal 722. A seu lado seguem o finlandês Loikanen, o queniano Kipkoech e o mexicano Eduardo Castro.
Guardem essa imagem na parede branca da vossa memória.
Algo de inédito está à beirinha de acontecer.
'Cometi um erro grave', queixou-se Leitão no final. 'Hesitei. Deixei-me ficar, só arranquei a 400 metros da meta, fui ultrapassado pelo Aouita e não contava com o suíço Ryffel'.
Foi terceiro.
Mas primeiro, também. Nunca até então o atletismo português ganhara uma medalha olímpica.
A memória às vezes é curta, e os homens fazem-na ainda mais curta.
António Leitão tem um lugar inapagável historia do desporto em português. Que ninguém se atreva a mergulhá-lo nas águas profundas do olvido.
Imagem para sempre
António Leitão era de Espinho, essa cidade onde as ruas têm números no ligar de nomes.
Era pouco mais velho do que eu, ele que já morreu há tanto tempo, sete anos passados sobre aquele dia fatal que pôs às suas galopantes debilidades.
Rapaz tranquilo, o António.
Tinha lá dentro uma mágoa que nunca se apagou: 'Se estou contente? Não, senhor, não estou contente. Eu queira o ouro. Julgo que tinha todo o o direito ao ouro. Fui eu e o Ezequiel Canário que fizemos a corrida toda, que renetámos com toda a gente, que impusemos o ritmo, que fizemos a despesa. E, no fim, vejo-me comido pelo marroquino e pelo suíço. Pelo Aouita, ainda vá lá, contava com ele. Mas agora pelo outro, francamente...'
A surpresa vinha envenenada.
Ryffel não era Ryffel. Era um projecto falso, trafulha. O suíço não passava de um batoteiro, de um aldrabão.
Poucas semanas mais tarde, num torneio internacional, a verdade impôs-se: foi apanhado positivo num controlo anti-doping.
A tristeza de António foi ainda maior. Uma injustiça deu-lhe nós na alma, provocou-lhe borgorigmos no estômago, fez-lhe comichão no sangue: 'Algum motivo haveria para ter sido surpreendido daquela forma. Eu, que conhecia tão bem todos os meus adversários. Ryffel deveria ter sido suspenso, deveriam ter-lhe tirado a medalha de prata e deveriam tê-la atribuído a mim. Mas acredito muito. Muito! Ainda voltarei, um dia, a ter a hipótese da minha vingança. E chegarei ao ouro. De forma limpa como sempre trabalhei. Não com químicos. Com pureza! Com a força das minhas pernas e do meu coração. Com a minha alma!'
As lesões, a doença, tudo se juntou para abater António, o rapaz de Espinho que tinha uma resistência digna das ondas do mar da sua terra.
Em Los Angeles, o seu sorriso simples já espelhava tristeza.
'Tenho a medalha pendurada ao pescoço, mas não consigo deixar de pensar que é mau. Fico aqui, por dentro, a remoer a asneira que fiz, o meu erro. Pensava que o andamento que impus era suficiente para dar cabo deles todos, e não foi. Calculei mal. Devia ter atacado antes. Talvez aos 600 metros da meta. Cometi a infantilidade de olhar para trás, e houve ali uma falha na passada que se tornou terrível. O meu treinador, o Jorge Ramiro, tantas vezes me avisou para ter cuidado com isso. É injusto. Mas tenho de queixar-me de mim próprio. Queria tanto o ouro e sou obrigado a contentar-me com o bronze'.
Sim, António. Esse bronze dourado de teres sido o primeiro português medalhado no atletismo de uns Jogos Olímpicos. Sim, António. Estejas onde estiveres, sorri. Sorri com um pouco de alegria que afaste para sempre e melancolia desse sorriso triste..."
Afonso de Melo, in O Benfica
E a prata do Carlos Lopes em Monreal 1976?
ResponderEliminar