"Correndo embora uma aragem de inquietação nesta (quase) Republica dos Corvos (lembram-se d’A República dos Corvos do José Cardoso Pires?), desde a Educação e a Saúde até às Forças Armadas e à Segurança Social, no futebol corre dinheiro aos milhões, o que me deixa tenso e retenso de inquietação e surpresa. Talvez só a mim e a muitos poucos mais, pois que não oiço um tropel de vozes guturais, trazidas pelo espanto, ou até pela indignação, a questionar por que, nesta Europa cristã, há tanto dinheiro para umas coisas e falta para outras.
Se aqui estivesse um dos corvos de São Vicente, remataria sempre do mesmo modo: “Deixe lá, isto já não tem conserto e, mais dia menos dia, todos os males da gente têm o mesmo fim”. Mas eu, como o Santo António (não quero comparar-me, em capacidade retórica, a este santo que, exceptuando o padre António Vieira, é incomparável na história da oratória nacional) – mas, como ia dizendo, eu, como o Santo António, não sou pessoa, para deixar azedar, dentro de mim, o que tenho para dizer. Procuro ser educado, polido, cortês, mas não escondo o acordo ou o desacordo, diante dos “vencedores” que fazem a História. Até no tempo do “Dinossauro Excelentíssimo” o fiz, mas com um cuidado tal que chego a ter vergonha das minhas infidelidades à ideologia “estadonovista”. No entanto, é da minha autoria o primeiro livro, editado pela Direcção-Geral dos Desportos, em Junho de 1974, depois da Revolução dos Cravos portanto, intitulado Para uma nova dimensão do desporto onde reuni textos escritos por mim, entre 1964 e 1974. O livro jazia escondido, numa gaveta da secretária do director-geral e esclarecia, no prefácio, que “o título Para uma nova dimensão do desporto quer dar o tom a uma iniludível maneira de ver o desporto (…) como prática medial ao serviço do Homem. Visão, por isso, tributária de uma tomada de posição do autor que, em primeiro lugar, significa ruptura com o complexo ideológico que informa o desporto português”…
Max Weber incitava os seus alunos e os seus inúmeros leitores, em Le Savant et le Politique, a “estarmos à altura do quotidiano”. Ora, o que para mim me parece mais evidente, no mundo de hoje, é a relativização dos valores. E porquê? Faço minhas as palavras de Miguel Real, na sua obra Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (Quidnovi, Maio de 2008), porque
1. Nada de exterior e transcendente (Deus, Sociedade, Humanidade, Razão, História, Inconsciente, Classe Social…) é superior e determinante, face à consciência singular do sujeito.
2. Nenhum valor em si e nenhuma escala axiológica encontram legitimação universal, fora da sua instauração epocal, social e histórica, ou seja, civilizacional e, por isso, uma consciência individual pode ou não segui-los, sendo sempre legítima, seja seguindo-os, seja não os seguindo.
3. Nenhum código linguístico e nenhuma substância de linguagem podem dar conta da realidade em si, da sua essência, senão fragmentaria e incompletamente; apenas uma fortíssima linguagem emotiva, exterior à razão, como a poesia, subvertendo as conexões semânticas da língua, nos pode aproximar e revelar a essência do homem e do mundo.
4. Nenhum corpo doutrinal (Filosofia, Teologia, Religião, Ciência, Ideologia…) é intrinsecamente capaz de espelhar com realidade o movimento e a substância do Ser.
5. Finalmente, nenhuma acção colectiva ou individual, nenhuma palavra colectiva ou individual são capazes de preencher, senão ilusória e efemeramente, o vazio de absoluto que se instaurou no coração do homem, nestes momentos terminais de uma civilização que, tendo conhecido o paraíso da crença inocente, se oferece hoje a si próprio o inferno de uma aceleração histórica, tão feita de presente fugaz quanto de um futuro sem sentido” (pp, 377/8).
O relativismo axiológico não significa relativismo epistemológico, mas implantação de um fundo agnosticismo na mais funda raiz do nosso ser. Um relativismo onde o “espírito de geometria” prevalece sobre o “espírito de finura”. Onde a quantidade reina e a demagogia se perfila como um dos fatores essenciais do sucesso do relativismo axiológico.
Aprende-se, na fenomenologia: “Toda a consciência é consciência de alguma coisa”. Ou seja, a consciência procura algo ou alguém que não é ela e, portanto lhe é transcendente (no sentido de exterior). Assim, a consciência define-se como intencionalidade. Por outras palavras: qualquer coisa, qualquer pessoa são “fenómenos” para a consciência. O lema do existencialismo: “a existência precede a essência” é assim explicado, precisado por Sartre: ”significa que o homem primeiro existe, descobre-se, surge no mundo e só depois se define. O homem (…) primeiro não é nada. Será apenas depois e será exactamente o que tiver feito de si próprio”. O sujeito sartriano não possui essência, não possui natureza, todo o seu ser radica na ação, na práxis, na criação. Se bem penso, o espaço onde se situa o pensamento de Sartre é o ético ou moral. Vejamos o que ele nos diz, no L’Existentialisme est un Humanisme: “O homem será, antes do mais, aquilo que projectou ser”. E recorrendo ainda ao mesmo livro: portanto, “o homem está condenado a ser livre”. O ser humano é livre e, se é livre, é responsável. Para mim, em Sartre, o ser humano é um sujeito eminentemente ético, por esta razão óbvia: porque se faz, fazendo. Na motricidade humana, que eu defino como “o movimento intencional e solidário da transcendência”, também o atleta, o bailarino, etc. se fazem, fazendo. E, pela transcendência, são projectos que assumem uma situação, para superá-la, ininterruptamente, até ao Absoluto… sempre desejado e sempre inalcançável! Toda a prática desportiva, designadamente a altamente competitiva, vive em êxtase do possível. Conheci um treinador de futebol que me dizia, com as pupilas a destilarem gotas de malícia: “Um jogador profissional de futebol tem de tê-los no sítio. Caso contrário, tem de mudar de profissão”. E sublinhava: “A coragem é das primeiras qualidades, na alta competição. Vê o Maradona? Faz coisas lindas com a bola. Mas leva porrada e não desiste e não se atemoriza. Sem coragem, ele não faria a maioria dos golos que faz”.
Já aqui lembrei a teoria dos três infinitos de Teilhard de Chardin: existe o infinitamente grande dos espaços siderais. Diante deles, cada um de nós nem um grão de areia parece. Mas também existe o infinitamente pequeno dos micro-organismos, que só máquinas potentíssimas podem descortinar. Mas, além de tudo isto, uma outra grandeza se descobre: o infinitamente complexo da consciência humana, com uma nobreza e uma beleza e uma grandeza moral inimagináveis. “Um único ato de amor, notava, com argúcia, Blaise Pascal, vale mais que o universo físico inteiro”. E eu, na sequência de Pascal e de Teilhard de Chardin, costumo dizer: “vale mais uma lágrima humana do que todas as taças e todos os campeonatos do mundo”. Oxalá João Félix aprenda a ser mais homem, no seu novo clube, o Atlético de Madrid, que dele mais não quer do que fazer dele um grande jogador de futebol. Diego Pablo Simeone, o treinador dos colchoneros, afirmou em entrevista à Imprensa: “Historicamente, o Atlético é uma equipa que compra jogadores jovens, para evoluírem. Como aconteceu com o Oblak que, quando chegou, não era o jogador que é hoje. Do João Félix esperamos que seja um rapaz com talento e que possa absorver as nossas ideias. Estamos a trabalhar, no seio do corpo técnico, para criar, para ele, as situações necessárias à sua evolução como jogador de futebol”. No entanto, também de sólida e solidária afectividade é demasiado importante, na evolução de um jogador profissional de futebol, para ser esquecida. Concordo que o futebol seja, para algumas pessoas, cada vez mais, um jogo de números, centrados que estão na análise estatística. Mas nem o futebol (nem o desporto) é matemática tão-só. O Messi é um exemplo a ponderar. “Parece incrível que, 132 jogos depois, Messi continue sem encontrar lugar na selecção” (Valdano, in A Bola, de 2019/6/22). Por falta de tecnologia, ou de ciência físico-matemática, ou de números?... O ser humano distingue-se, pela sua qualidade. Quantitativamente, é um “bicho fraquinho”."
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