"Quando é meia-noite em Manama, Adliya estende-se pelas suas ruelas pedonais ao sabor dos néones dos restaurantes e bares onde se bebe álcool como em qualquer país civilizado
Manama – Quando é meia-noite em Manama, não deixa de ser apenas um começo de noite. Se há algo que me fascina no Oriente – e no Oriente a Oriente, como dizia Pessoa – é o facto de as horas teimarem em não viver preocupadas com o movimento da Terra em redor de si própria. Aqui, a rotação não passa de uma abstracção. Já da translação, não querem nem saber…
Quando é meia-noite em Manama, Adliya estende-se pelas suas ruelas pedonais ao sabor dos néones dos restaurantes e bares onde se bebe álcool como em qualquer país civilizado. Se me dão licença, o álcool é uma forma de cultura como outra qualquer. William Faulkner, que não pode ser confundido com um bêbado barato de boteco ou de taberna, nunca teve dúvidas: “A civilização começou com a destilação!” Quem sou eu para o desmentir. Não tenho quaisquer dúvidas que o vinho fez pela literatura, pela pintura, pela música e por todas as formas de expressar a arte e a criatividade mais do que o velho Louis Pasteur fez pelo queijo fresco.
Adliya é o bairro de Manama onde se bebe e se come e se conversa, e lá pelos primeiros raios de sol perguntamos, muito a propósito, por que raio deram tal nome à capital desta ilha minúscula que para o mundo todo é Bahrain mas já foi, para nós, portugueses, o Barém das pérolas que nasciam das águas doces de um mar salgado: Manama significa Lugar que Dorme. E não só não dorme como não se apaga, transformada como está, tal como as vizinhas Doha, Dubai, Abu Dhabi ou Cidade do Koweit, numa espécie de parque de diversões dos arquitectos que inventam prédios que piscam de luzes e luzinhas, construídos em todas as formas e feitios, em paralelepípedo, em cubo, em elipse, em triângulo e losango e o mais que se está para saber e de fazer inveja a um certo léxico que tomou conta deste novo pontapé na bola no qual alguns furiosos da física e da mecânica resolveram descobrir fantasiosas e vagas geometrias e postulados euclidianos. Felizmente, os mestres que foram fazendo o favor de me ensinar, há mais de 30 anos, encaravam o futebol de outra maneira. (Ia para escrever de outra forma, mas sujeitava-se a mal-entendidos). O Carlos Pinhão, por exemplo, avisava logo que não admitia pontos de interrogação num título ou no final de uma reportagem: “Então o pobre do leitor gasta dinheiro no jornal e ainda tem de responder a perguntas?! Ele compra o jornal para lhe darmos respostas!” Tinha toda a razão, mas hoje faço-lhe aqui uma pequenina desfeita e guardo o pontinho marreco para o fim.
Sentados à minha frente, há quatro casais alemães que comemoram aniversários, desprezando os conselhos do sapiente João de Deus:
“Anos? Não caia nessa
Olhe que a gente começa
Às vezes por brincadeira
Mas depois se se habitua
Já não tem vontade sua
E fá-los queira ou não queira.”
Estes, pelos vistos, querem. Escorropicham copos de tequila, enchem-se de margaritas e devoram nachos e burritos com uma obstinação de nibelungos. Uma observação mais pormenorizada da mesa estrepitosa permite perceber que a vítima, ou a protagonista, ou aquilo que vos passe pela cabeça, é uma fêmea já não primaveril mas ainda não invernosa. E lá está, em cheio: meia-noite em Manama. A hora que apavorava Machado de Assis mas alegra estes cavaleiros teutónicos que invadiram o Cale México – dá-me a sensação que deverá ter nascido Calle México mas, entretanto, houve alguém que se baralhou com os eles –, algo absolutamente inofensivo se pensarmos que uma das últimas vezes que um grupo de alemães montou uma farra igual, em vez de invadirem um restaurante, invadiram a Polónia. A primaveril mas não invernosa aniversariante faz-me um gesto de convite. Sossegado no canto da minha escrita, recuso, cavalheiro, galante. Provavelmente leu o meu pensamento e o gesto é como o do domador de leões invetivado por um espectador menos convencido da sua coragem: “Vem cá dizer-me isso, mas dentro da jaula!” Mas depois lembrei-me daquele inenarrável personagem queirosiano, o Conselheiro Gama Torres, e fiquei com vontade de lhe responder: “Minha senhora, como posso eu sorrir se a Polónia sofre?”"
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