"Vasco da Gama – Eles por aqui dizem Vascudegama, tudo misturado. Ou então apenas Vasco, para facilitar, aí já sem u. O aeroporto de Dabolim fica mesmo ao lado. Península de Mormugão, a 30 quilómetros de distância de Pangim, no delta do rio Zuari, maior porto de Goa, barcos parados sobre as águas, um ou outro, mais pequeno, de pesca, que zarpa em direcção ao horizonte, os edifícios da base naval indiana da INS Hansa, as instalações mal cuidadas dos Estaleiros Navais de Goa, os ferries para Dona Paula. Ao longe, a Ilha Grande, e as baías consecutivas de Bimbel Beach e Bagmalo Beach, sempre para sul até Velsão, Cansaulim e Majorda.
Estou na zona mais densamente habitada do estado de Goa, o mais pequeno de toda a Índia. Aquele que foi português até dezembro de 1961 mas cujas estações de caminhos-de-ferro, percursos fluviais e divisões administrativas ainda fui obrigado a decorar anos mais tarde, na Escola Primária de Santa Cruz, na ilha da Madeira, o ponto mais alto da ternura, num sala pejada de bibes brancos que tinha dependuradas na parede as fotografias de Sua Excelência o Presidente da República, Almirante Américo Deus Rodrigues Thomaz, e do Senhor Presidente do Conselho, Professor Marcello José das Neves Alves Caetano, sob um crucifixo no qual jazia, em prata, um Cristo cabisbaixo que velava por nós e, sobretudo, por eles. Goa, Damão e Diu, a Ilha de Angediva e os enclaves de Dadrá e Nagar-Haveli. Começávamos as aulas pela manhã com a lengalenga da Avé Maria Cheia de Graça/O Senhor é Convosco, ventre e tudo, e fechávamos para o almoço com as vozes afinadas nos Heróis do Mar/Nobre Povo/Nação Valente. Eram tempos bizarros, convenhamos.
Quando Vasco da Gama chegou à Índia era maio e fazia um calor insuportável em Calecute. Aliás, ensina-nos a História, era domingo quando Vasco da Gama chegou à Índia, mas só na segunda-feira é que João Nunes foi até Calecute. Os barcos ficaram parados um pouco mais a norte, ao largo de Pandarane e de Kappad Beach.
João Nunes era um degredado, mas parece que não era mau homem e revelava até alguma sensibilidade. Num assomo de ciúmes, espancou brutalmente o primo Fernão Nunes que lhe cobiçava a mulher, Constança, causando-lhe a morte. Ou talvez não tenha sido bem assim. Não garanto. João Nunes foi condenado ao degredo e ao porvir. Viu a cidade dos Samorins.
Parece que os presentes que Vasco da Gama levou ao Samorim de Calecute não eram lá grande coisa: algum tecido; uma dúzia de casacos; seis chapéus; coral; seis bacias; uma caixa de açúcar; um barril de mel e outro de manteiga rançosa.
Conta-se que o Samorim de Calecute riu-se que nem um perdido com os presentes de Vasco da Gama e com a pelintrice de D. Manuel, que queria ser Rei do Mundo comprando monarcas menores à conta de bugigangas.
Na Índia, dar presentes é muito importante. Mesmo que esses presentes façam as pessoas casquinar de gozo. Para os indianos, os presentes representam um regresso à infância, e na Índia a infância é transcendente.
A infância é a fase da vida em que temos mais dificuldade de separarmos o nosso mundo interior do mundo exterior. Os indianos vivem num estado de desenvolvimento em que o mundo exterior não tem uma existência independente, mas vive eternamente relacionado consigo e com os seus sentimentos. De certo modo, é como se vivessem numa infância permanente. Por isso as coisas não são apenas coisas: são boas ou más, ameaçadoras ou reconfortantes, brilhantes ou sombrias, conforme os sentimentos de quem as vê.
Estando em Vasco da Gama, Alto de Chicalim, a ver o mar pelo qual Vasco da Gama aqui chegou antes de isto ser Vasco da Gama, não consegui deixar de sorrir a pensar no Samorim de Calecute às gargalhadas perante os presentes foleiros de D. Manuel. Não deve ter sido uma situação agradável para Vasco da Gama. Até certo ponto, o Samorim mandou-o à merda. E isso não vinha nas sebentas..."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!