"Primeiro domingo de 1968: o Benfica recebeu o FC Porto e venceu por 3-2. Talvez um dos melhores clássicos de sempre, diz quem lá esteve. Assombroso transe de parte a parte na vontade indómita de lutar pela vitória até à última gota de suor.
Primeiro fim-de-semana de 1968 e já se falava do Jogo do Ano. Era um Benfica - FC Porto. No Estádio da Luz.
Desafio impressionante de garra, de querer, de pertinácia - palavra que na altura estava muito presente no léxico dos relatadores -, absolutamente frenético, imparável.
Um nunca mais acabar de adjectivos. E pontos de exclamação.
Há que dizer, para começar, que o Benfica mal deixou que o jogo se iniciasse. Com um vigor notável lançou-se sobre o seu adversário com as garras afiadas de uma águia imperial.
Quem assistia a tudo nas bancadas ficava com a sensação de que seria fácil: encostados às cordas como um pugilista entontecido, os portistas esbracejavam nas pareciam impotentes.
Ah! A Luz fervia em lava e chamas de vulcão!
Um braço encontra o caminho da bola na área de Américo: 'Penálti!', grita o povo ensandecido.
Penálti, confirmou o árbitro.
Eusébio pegou na bola com aquele seu jeito pachorrento e tranquilo de quem sabe todos os segredos sobre os guarda-redes adversários. Pouso-a no lugar certo e disparou um dos seus pontapés inimitáveis. Golo!
Uma onda vermelha de bandeiras. Buzinas soando na tarde.
Dois minutos depois, os adeptos foram de mãos dadas com a equipa até às nuvens.
Torres, o Bom Gigante Torres, pareceu desequilibrar-se quando enfrentou Pavão. Puro engano. Passou por ele facilmente, em corrida de passada larga. Depois outro e outro. E a baliza na sua frente. Américo desolado, impotente. Nada a fazer outra vez. Dois a zero. Benfica de peito mais enfunado do que vela de galeão, como dizia o Raposão da Titi n'A Relíquia do divino Eça.
A resposta do orgulho
Não julguem que o FC Porto morreu aí para o encontro. Nem pensar! Um frémito de orgulho perpassou as linhas azuis e brancas, uma decisão interior e imensa de lutar contra o destino que parecia ter escolhido esse jogo para mais uma goleadora dos encarnados.
Firmes no seu meio-campo, os nortenhos apostaram em não voltar a cometer os erros anteriores. E predispuseram-se a atacar, por sua vez. Aqui e ali, libertavam-se do jogo adversário e iam surgindo perto do golo. E ele chegou, antes do intervalo.
Ninguém queria acreditar que três quartos de hora estavam já ultrapassados. O tempo perdia a sua básica noção. Suspiravam dezenas de milhares de pulmões pelo reatar daquele corre-corre, uma excitação empurrava corações batendo a muito mais de 70 pancadas por minuto.
O Benfica reclama um derrube a Eusébio na grande área contrária. O árbitro decidiu-se por um livre indirecto.
O FC Porto reclama um golo anulado por carga sobre José Henrique.
A aventura continua.
O Benfica desse tempo era uma equipa impressionante, sem medos nem hesitações. Tinha uma consciência fulgurante da sua própria qualidade e da capacidade individual e colectiva dos seus executantes. Não dobrava a espinha perante quem quer que fosse, mesmo nos momentos das derrotas.
O FC Porto foi, na Luz, nesse dia 7 de Janeiro de 1968, de uma valentia notável. Sabia da superioridade encarnada mas nunca virou a cara à luta. O resultado (3-2) confirmou-o. Ainda por cima porque houve o empate antes do segundo golo de Torres.
Que espectáculo alucinante!
Golpe e contragolpe.
Ataque encarnado a todo o transe: Jaime Graça, no meio, pautando as ofensivas; Simões, Eusébio e Torres absolutamente principescos.
Do outro lado, Valdemar, Rolando e Atraca acima de todos. Mas também houve Djalma e Manuel António para desinquietar a vida de José Henrique.
O público ficou largos minutos nas bancadas após o apito final. Não queria que toda aquela vertigem desaparecesse das suas retinas ávidas de momentos como aqueles.
Os benfiquistas festejavam um triunfo artístico, fulgurante.
Os portistas agradeciam aos seus jogadores todos os litros de suor entornados sobre a relva.
Muitos disseram que foi um dos melhores Benfica - FC Porto de todos os tempos.
Não irei desmenti-los.
Só sei que estamos a precisar de outros assim. Ou de muitos outros assim. Para bem do jogo que todos amamos."
Afonso de Melo, in O Benfica
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