"Pegou num terço do dinheiro da festa de despedida e deu-o ao clube; Futebol começou com pés em lástima
1. O futebol começou de trapeira. Muitas meias a mãe viu desaparecer, levadas à sorrelfa pelos cinco filhos - para, com elas, fazerem bolas. Sim, eram cinco os irmãos - e todos eles com o fascínio do futebol no corpo. Chegaram até a fazer um clube a que chamaram Monte de Santana FC. Os jogos faziam-nos quase sempre às escondidas do pai: «...que não nos queria naquele vício, incontrolável!»
2. Quando foi de Leça da Palmeira estudar para o Porto, alojou-se na casa da avó. O campo mais próximo era o do Boavista - e foi ao Bessa que ele foi à procura do seu futuro. O treinador que acolhia rapazotes ao magote, olhou para ele, mediu-o dos pés à cabeça e deu-lhe em resmungo: «Tu não tens pinta de jogador, podes ir embora!» De lágrimas nos olhos, mas seguro da sua fé, suplicou-lhe: «Por favor, deixe-me mostrar-lhe o que eu valho, senhor!» Repelido voltou a ser, mas não largou o estádio - e, quando, contando os candidatos ao teste, o treinador percebeu que lhe faltava um para fazer duas equipas, gritou-lhe, displicente: «Bem, vai lá equipar-te, então!».
3. Precipitou-se em sofreguidão para a cabina, as únicas botas que lá havia para ele eram 41, calçava 38: «Acabei com os pés numa lástima, mas provado». Tornou-se, de pronto, estrela dos juniores do Boavista - a jogar como avançado centro. A Académica desafiou-o para Coimbra, dizendo-lhe que assim poderia tirar o curso que quisesse, o FC Porto e o Sporting também o tentaram - e escolheu continuar no Boavista.
4. Pelo Boavista ainda jogou andebol e hóquei em campo - e, antes sequer de ir para o Benfica, fez do Benfica campeão de hóquei: «Marquei o golo da nossa vitória contra o Ramaldense - e, por causa desse resultado, o Ramaldense perdeu o título».
5. A tropa fê-la em Évora. Treinava-se no Campo Estrela, com a equipa do Lusitano - e depois, ao domingo ia jogar pelo Boavista (nunca deixou que não fosse assim). Não, não recebia ordenado do clube, tinha apenas direito a prémios por vitórias (e nem sempre) - trabalhando, como trabalhava: como desenhador de máquinas de fundição.
6. Duma incrível polivalência, não foi ainda como médio, médio de refinada técnica e arguta visão de jogo que aos 21 anos se tornou internacional, num jogo com a Irlanda, algures por 1946 - foi como interior esquerdo. Mesmo quando, depois, o Boavista caiu na II divisão não deixou de ser chamado à equipa de Portugal - e por essa razão acabaram por dar-lhe um «privilégio» para no Bessa se ir mantendo: 700 escudos por mês (60 escudos era o que então ganhava fiel de armazém).
7. Chegou-se a 1952 - o FC Porto também o desejara em ardor, decidiu-o: «agora é de vez: se não me deixarem ir para o Benfica, nunca mais jogo à bola». Percebeu-se-lhe, firme, a ameaça - e tiveram de fazer-se no Boavista duas acaloradas assembleias gerais que permitiram a transferência a troco de 150 contos (que hoje seriam pouco menos de 58500 euros). Logo se tornou substituto de um ícone: o Francisco Ferreira. (Tinha 27 anos - e foi ainda a tempo de ganhar quatro Taças de dois campeonatos).
8. Tão impressionante era o seu carisma (sobretudo como líder em campo) que Otto Glória e transformou no seu capitão de equipa. O Benfica deu-lhe festa de despedida em Junho de 1957, num jogo com o Boavista e ele teve gesto que tocou no coração dos seus adeptos (e não só...): pegou num terço da receita e ofereceu-a ao clube que andava em angariação de fundos para construção do Terceiro Anel.
9. Após a festa de despedida ainda esteve mais duas épocas em campo (mas já fugaz no jogo...). Mudou de lado e mais história fez: no Benfica foi adjunto de Otto Glória, Bela Guttmann, Fernando Riera, Lajos Czeizer, Elek Schwatz - e sempre que era preciso treinador em emergência era ele que lá ficava (e assim ganhou, pelo Benfica, a Taça de Portugal de 1961/1962).
10. Adjunto de Otto Glória foi também no Mundial de 1966. De lá saltou para treinador do SC Braga. O Sporting foi buscá-lo. Andou depois (por mais duma vez) pelo Boavista e pelo V. Guimarães (onde perdeu a Taça para o Boavista de Pedroto). Levou a CUF à Taça UEFA, passou pelo Espinho, voltou a Braga, pôs o Viseu na I divisão - e regressou ao Benfica, a adjunto de Lajos Baroti e de Sven-Goran Eriksson."
António Simões, in A Bola
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