"O murro de Jack Johnson em Stanley Ketchel foi tão potente que ficou com dentes do adversário cravados na luva
Walter Dipley foi um daqueles canalhas que devia ser condenado às catacumbas do olvido mas a verdade da literatura manda dizer que grandes canalhas dão sempre grandes personagens. Vejam, por exemplo, o Dudu. O Dudu é um dos canalhas inimitáveis de Nelson Rodrigues: «Talvez o único canalha vivo do Brasil. Todo o mundo tem defeitos e qualidades. O Dudu só tem defeitos!». Ou o Genival, do Chico Anysio, canalha infatigável: «Rouba o delicioso pirulito de uma criança, salga toda a comida de um banquete, sugere omeletes aos fregueses de um restaurante abarrotado de ovos estragados e coloca no ónibus do Méier um gringo desesperado que procura o Copacabana Palace». Ou o Thomas Spencer, de Julia Navarro: «Menti, enganei e manipulei à vontade, sem me importar com as consequências. Destruí sonhos e reputações, traí os que me foram leais, causei dor àqueles que me quiseram ajudar. Brinquei com as esperanças dos que pensaram que poderiam mudar quem eu sou».
Pois bem, Walter Dipley foi um canalha tão canalha ou ainda mais canalha do que eles.
Quando lhe ofereceram emprego no Dickerson Ranch, no Missouri, em outubro de 1910, fazia-se passar por Walter Kurtz. Afinal, o homem para quem ia trabalhar era Stanislaw Kiecal, ou melhor, Stanley Ketchel, o Assassino do Michigan. Valia a pena.
Kiecal fora, por sua vez, um adolescente canalha, filho de emigrantes polacos, sempre envolvido em cenas de pancadaria nas ruas de Grand Rapids, no Michigan, que fugira de casa e acabaria por se dedicar ao boxe. Foi então que mudou de nome.
Apesar de ser um peso médio, tinha a farronca de desafiar vários pesos pesados, alguns com mais 15 ou 16 quilos do que ele. Por isso, um ano antes da sua morte, foi com alegria que subiu ao ringue para defrontar Jack Johnson, o Gigante de Galveston, campeão do mundo de pesados e que media, tranquilamente, mais 20 centímetros do que o seu metro e setenta. E, também nesse momento, foi canalha. A canalhice é mesmo assim: faz comichões no sangue.
Jack Johnson e Stanley Ketchel tinham combinado que o combate seria de exibição. Onze rounds para agradar os mais de 10 mil espetadores presentes no Mission Street Arena de Colma, Califórnia, mas sem excessos. Há várias versões sobre o que aconteceu na realidade, com mais destaque para a versão de Johnson, mas este também não era flor que se cheirasse. Há um filme que mostra Ketchel a lançar-se furiosamente sobre Jack fazendo-o cair. A raiva tomou conta do gigante: com a direita desferiu um potente soco no adversário. Tão potente que, para além do KO, o Assassino do Michigan deixou vários dentes presos à luva de Johnson. Humilhante por demais, até mesmo para um canalha.
Stanley Ketchel teve uma vida curta: só faria mais cinco combates. A derrota frente a Jack Johnson abalou-o muito. Foi um dos motivos porque decidiu pedir o Dickerson Ranch emprestado a um amigo e preparar-se aí para exigir a desforra. Encontrou no rancho a cozinheira Goldie Smith e o seu marido Walter Dipley. Gente pouco aconselhável. Mas que podia isso incomodar um tipo que passara a maior parte dos seus 24 anos a distribuir pancada?
Certo dia, Ketchel ouviu um ruído absurdo vindo dos estábulos. Dipley, o canalha, entretinha-se a chicotear sadicamente um cavalo. A discussão entre ambos foi dura. Stanley ameaçou Walter de que o correria a pontapé se o episódio se repetisse. Assinou a sua sentença de morte.
Na manhã seguinte, Dipley entrou na cozinha onde Ketchel tomava o pequeno-almoço de costas para a porta. Trazia na mão um rifle e gritou: «Hands up!».
No momento em que Stanley fez menção de se virar, uma bala atravessou-lhe o ombro e alojou-se-lhe no pulmão. Depois Walter Dipley desfez-lhe a cara a coronhadas e fugiu.
Goldie Smith afirmou, mais tarde, que Ketchel tinha tentado violá-la e que fora essa a razão da tranquibérnia. R. P. Dickerson, o dono do rancho, ofereceu 5 mil dólares a quem lhe trouxesse Dipley, vivo ou morto, de preferência morto.
Foi capturado pouco depois. Tanto ele como Goldie foram condenados a prisão perpétua.
No dia 14 de Outubro, pelas sete e meia da tarde, o ‘Assassino do Michigan’ soltava uma súplica sussurrada: «I’m so tired. Take me home to mother».
Quando anunciaram a sua morte a Wilson Mizner, o seu treinador, este limitou-se a aconselhar: «Comecem a contar até dez. Antes de terminarem, ele levanta-se!».
Nada a fazer: a bala do canalha fora bem mais poderosa do que a direita de Jack Johnson. Não deu sequer para começar a contar..."
Afonso de Melo, in Sol
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