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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Os menosprezados guarda-redes

"Ontem foi dia mundial do cão. Cave Canem rezam os avisos à entrada de certas propriedades, maneira erudita de dizer “cuidado com o cão”. Tais avisos, mesmo que em língua vulgar, deveriam estar nas traves das balizas, alertando para a presença de Cérberos de uma só cabeça, guardiães do terreno que, para uns, é inferno e, para outros, há de ser a terra prometida.
Não por acaso, os espanhóis chamam aos guarda-redes cancerberos, em homenagem ao porteiro tricéfalo do Hades, que impedia que os mortos dali saíssem e os vivos ali entrassem, e aos outros, os que para lá iam, recebia com suspeita amabilidade em tão horrenda criatura. Como comemoração antecipada da feliz data, no sábado futebolístico os guarda-redes brilharam mais que os avançados.
O falecido árbitro de futebol Vítor Correia, da Associação de Futebol de Lisboa (ainda hoje acho que a apresentação de um árbitro só fica completa com a referência à respetiva associação regional – um Veiga Trigo de Braga e não de Beja, não seria um Veiga Trigo, como um Carlos Xistra pede nitidamente uma Associação de Futebol de Castelo Branco), costumava dizer, como prova de experiência e da sua magra capacidade de espanto, que, desde que vira um porco andar de bicicleta, já nada o surpreendia. Não menos extraordinário do que um suíno ciclista será um lobo voador, mas foi isso que, anteontem, o mundo inteiro pôde testemunhar a partir do estádio Molineux, em Wolverhampton: um “lobo” a voar para defender uma bola que ia de tal forma colocada que o guarda-redes lupino ainda precisou do auxílio da trave para completar a defesa.
Ao ver aquela defesa aeronáutica, alguns sportinguistas terão sentido súbitas saudades de Rui Patrício e das muitas defesas que lhe valeram a canonização profana como São Patrício de Alvalade. Porém, à noite, após o fim do jogo no estádio da Luz, poucos terão sido os saudosos do guarda-redes oriundo de Marrazes. Afinal, Romain Salin, que começou a época como suplente de um italiano com bigode de proxeneta, tinha-se sagrado homem do jogo e, com uma mão-cheia de defesas ditas de “elevado grau de dificuldade”, embora nenhuma tão pênsil quanto a de Patrício, impedira a derrota do Sporting.
Mas a desgraça do guarda-redes, sobretudo o de um clube grande, é que a celebração efusiva dos seus feitos equivale a um reconhecimento público de fraqueza. Se o guarda-redes é o homem do jogo é porque a equipa não o soube resguardar, não foi capaz de travar as investidas do adversário, esteve à mercê de uma estocada fatal. José Peseiro, que já vai tendo anos e bagagem de raposa velha (já que falamos de cães e seus parentes), veio dizer aquilo que os treinadores, sobretudo os de um clube grande, são obrigados, por estatuto e amor-próprio, a dizer nestas ocasiões: o guarda-redes limitou-se a fazer o trabalho dele. Espera-se que, no balneário, Peseiro se tenha mostrado mais agradecido ao seu guarda-redes e salvador.
Que ninguém vá para guarda-redes à espera da gratidão alheia, eis uma lição que, a par das saídas a cruzamentos e jogo com os pés, todos os aspirantes a guarda-redes deveriam aprender. Há excepções, sim, mas normalmente envolvem defender penáltis sem luvas ou segurar resultados improváveis.
Este último foi o caso de Rui Patrício, que ajudou o Wolverhampton a travar o rolo compressor do Manchester City. E foi também este o caso de Douglas, guarda-redes do Vitória Sport Clube (ontem ouvi um indignadíssimo adepto do clube vimaranense a exigir que a comunicação social tratasse o clube com o respeito merecido e o chamasse de Vitória Sport Clube e não, como teimam em fazer alguns provocadores a soldo de forças inimigas, Vitória de Guimarães), que contribuiu para um triunfo histórico no Dragão. Uma derrota do Futebol Clube do Porto em casa é um acontecimento raro. Depois de estar a ganhar por 2-0, então, é mais do que um cisne negro, é quase um unicórnio. Por essa razão, as milagrosas defesas de Douglas já nos descontos foram festejadas como deveriam ser sempre festejadas defesas daquelas: como se fossem golos. (O Cérbero vimaranense estragou a noite ao pai, por assim dizer, pois o pai do cão do Hades era o gigante Tifão, de cujos ombros, segundo o relato fidedigno de Hesíodo, saíam cem cabeças de dragão.)
Rui Patrício e Douglas receberam o justo louvor. Já o desvalido Salin, talvez por jogar num clube com outras ambições, teve direito a elogios mais comedidos. Porém, lá no fundo, ele sabe (e sabemos nós) que, na noite de sábado, o herói calçava luvas. Contido e discreto, Salin mostrou aquele género particular de heroísmo que se espera de um guarda-redes e que se confunde com a sensação honrosa do dever cumprido. Salve Salin! Cave Salin!"

1 comentário:

  1. Muito lindas as loas tecidas por toda a (des)comunicação (anti)social ao Salin. Nem sei como não apelidam de injusto o cartão amarelo que este viu já no período de dompensação da segunda parte por prática de anti-jogo. Afinal de contas, o que ele fez naquela reposição de bola em jogo na marcação do pontapé de baliza (levar a bola calmamente de um ponta à outra da pequena área) em nada diferiu das outras ocasiões em que esteve incumbido da marcação de um pontapé de baliza. Que injustiça!!

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