"Antes sequer de começar, o primeiro dia dos quartos-de-final colocou todos os envolvidos perante um problema para resolver. Ao Uruguai faltava Cavani, 50% da sua letal dupla ofensiva - talvez a única parelha de avançados no futebol actual capaz de ensaiar jogadas de combinação quando ambos se encontram a cinquenta metros um do outro (como Portugal lamentavelmente confirmou). À França faltava Matuidi, uma espécie de resguardo táctico assimétrico cuja versatilidade ajuda Deschamps a dormir mais descansado e o impede de seguir o seu instinto secreto, que é começar cada partida com sete trincos e três fadas-madrinhas. Ao Brasil faltava Casemiro, que além de ser o jogador mais talentoso na história do futebol a cometer faltas que só são vistas pelos telespectadores, é também um guarda-costas de tremenda eficácia. Quanto à Bélgica, sem ausências forçadas, foi a única a apresentar-se apenas com o problema do costume: como marcar o golo acidental que lhe permita jogar o resto do jogo com espaço livre suficiente para conseguir marcar outro.
Como se veio a verificar, os problemas da França e da Bélgica foram os mais fáceis de resolver, e deixaram todos os espectadores mais ou menos neutrais com o seu próprio problema, que foi sentir que as meias-finais se esgotaram essencialmente nestes dois jogos (ou, no caso do França-Uruguai, no jogo que poderia ter acontecido com Cavani em campo), e que pelo menos três destas equipas eram mais merecedoras de um lugar na final do que qualquer uma das outras quatro que ainda o pode garantir. Também por isso é difícil resistir à conclusão prematura de que o próximo campeão mundial vai ser decidido no França-Bélgica, um confronto onde ambas as equipas vão encontrar aquilo que não as atrapalhou ontem (um guarda-redes de elite, no caso francês; um trinco omnipresente, no caso belga), e onde se prepara um promissor frente a frente entre dois dos melhores médios da competição, Pogba e De Bruyne, cujo nível exibicional tem vindo a subir gradualmente.
Pogba, em particular, tem sido uma surpresa - duplamente reforçada pelo facto de uma "surpresa" ser a coisa mais surpreendente que se podia esperar dele nesta fase da carreira. Foram duas épocas de purgatório reputacional, em grande medida definidas pelo custo exorbitante da sua transferência para o Manchester United e pela percepção generalizada de que o mesmo correspondeu a uma tonelada de recursos dissipados numa fantasia, como se Pogba fosse um efeito colateral na crise de meia idade de terceiros: alguns compram um descapotável, outros fazem uma operação plástica, e depois há quem pague 110 milhões de euros por um médio-centro francês.
Uma etiqueta de nove dígitos, mesmo num mercado hiper-inflaccionado, vai inevitavelmente condicionar e distorcer expectativas. É o género de quantia que compra sucesso enfático e instantâneo, e não esporádicos vislumbres do Sublime. O preço de um jogador regularmente decisivo, mas também regularmente dominante.
O problema é que Pogba prometeu, desde muito novo, ser o primeiro tipo de jogador, mas raramente pareceu ser o segundo: aquele capaz de influenciar e controlar a natureza de um jogo, e o curso de um campeonato. O talento esteve lá desde o início, numa acumulação escandalosa: era óbvio para todos que transbordava qualidade. Mas na verdade, "transbordar" é o verbo precisamente errado. O que ele fazia era "reter" qualidade, mantendo-a em órbita ao seu redor, estabilizada pela sua própria força gravitacional. Traduzi-la num impacto contínuo nunca foi uma prioridade até as circunstâncias (o preço, mas também um clube desesperadamente à procura de referências individuais) o forçarem ao papel de produtor de desequilíbrios em série.
É um papel contra-intuitivo para alguém cujo vocabulário técnico (quase ilimitado, mas zelosamente protegido) era menos um instrumento para comunicar do que um veículo de auto-expressão. Sempre houve um elemento de impassibilidade nos seus maneirismos mais exibicionistas: uma presença berrante, mas estranhamente diáfana em campo, na qual os sinais visíveis de todas as dinâmicas de pressão associadas ao conceito de "jogador-de-futebol-a-jogar-futebol" se destacavam pela ausência, como se estivesse empenhado numa espécie de solidão performativa - em público. Quantas das suas mais memoráveis intervenções (a variação de flanco feita em corrida, por exemplo, com a parte exterior do pé, e perfeitamente calibrada para coincidir com o sprint do colega que vai receber o passe) pareciam espasmos de tímido narcisismo - actos intransitivos que nada iniciavam, concluíam ou modificavam, limitando-se a sancionar a sua brilhante auto-suficiência? Actos que tinham ainda o seu reflexo na postura de desalento quando não encontrava a solução "brilhante" e era forçado ao passe inócuo e mainstream, ao mero gesto de manutenção, desembaraçando-se da bola com um encolher de ombros a meio caminho entre o resignado e o agressivo.
Foi este o Pogba do Mundial do Brasil, do Euro-2016, e dos anos no Manchester - o que se refugiava na inconsequência quando não conseguia ser espectacular - mas não tem sido o Pogba do Mundial. Em vez de procurar problemas para resolver, tem procurado problemas para evitar, assumindo com brio todas as tarefas administrativas que não aparecem em montagens no YouTube, mas sim nas estatísticas da Opta: contra a Argentina fez dez recuperações de bola (o dobro de qualquer outro colega, Kanté incluído); e contra o Uruguai andou a meter o corpo em tudo quanto era barafunda, ganhando catorze duelos individuais - o máximo de um jogador francês num Mundial desde 1998. E ainda lhe sobrou tempo para desbloquear duas dificuldades na fase de grupos.
A maldição do jogador capaz de fazer tudo é provocar debates constantes não sobre o que pode, mas sobre o que deve fazer. Pogba estancou provisoriamente os debates tornando-se, de todas as coisas possíveis e imagináveis, sólido, fiável e seguro. E ganhou uma semana, e talvez duas oportunidades, para se arriscar a fazer parte de um debate completamente diferente."
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