"Os russos são, no geral, uma gente tão desmesurada como a sua terra
Penza – O Mundial da Rússia dispensou a Sibéria. Não sei se, em tempos que lá vão, poderia ser uma afronta à unidade sagrada do povo soviético. Eu tenho pena que não haja Sibéria neste universo diário de futebol de todos os cantos de uma Terra sem eles, apenas ligeiramente achatada nos polos. Nada para lá de Ekaterinburgo, a cidade dos Velhos Crentes, os dissidentes ortodoxos.
Para compensar, este Mundial é vermelho. Faz sentido. A Rússia é vermelha, nem poderia ser de outra forma. Portugal é vermelho e a Bélgica também, com rabiscos amarelos. E o Egipto e a Espanha e Marrocos são vermelhos; a Dinamarca é vermelha, e a Croácia vermelha aos quadradinhos; o Peru ou é vermelho ou tem lista vermelha. A Sérvia e o Panamá são vermelhos; a Suíça alterna vermelho com o branco. A Coreia do Sul e a Tunísia vestem de vermelho, a Polónia pode fazê-lo, a Inglaterra tem-no feito com frequência. A Costa Rica é inevitavelmente vermelha.
Krasni, a palavra em russo, tinha o significado de belo, altivo, bom, honrado. O vermelho é a cor da alma russa, por mais escura que seja a gruta em que vive encarcerada, segundo dizia Dostoievski que, esse sim, esteve enterrado vivo na Sibéria, em Omsk, nas margens do rio Irtysh.
Krasivi quer dizer bonito e tem a mesma etimologia. Como prekrasni: excelente.
A língua russa é extensa como a Sibéria e não apenas pelas suas seis declinações, que passam a ser sete com a não muito frequente utilização do vocativo.
“À noite, o vermelho canta nas roupas, nas maçãs do rosto, nos lábios das mulheres de má vida”, escreveu Aleksandr Blok, o poeta que começou por apoiar os bolcheviques e que morreu dois dias antes de receber a autorização para deixar o país.
Para os bolcheviques, o exército era vermelho. O sangue do povo, camponeses e operários, unidos ou não.
Blok desiludiu-se com a revolução vermelha de 1917. Deixou de ser poeta: “Já não ouço mais sons. Não reparas que deixou de haver sons?”
Nem Gorki conseguiu dar-lhe resposta.
Ah! Como acontece com todos os poetas, primeiro matam-nos e depois veneram-nos.
Antes de deixar de ouvir os sons, Aleksandr Blok vivia encantado com o vermelho: “Os dias estão cada vez mais repletos de gritos, de bandeiras vermelhas ondulando ao vento; à tardinha, a cidade, por um instante meio adormecida, cobre-se de vermelho pelo crepúsculo.”
Os russos são, no geral, uma gente tão desmesurada como a sua terra. Como a Sibéria, por exemplo, só por si o maior país do mundo.
Jack Reed, o jornalista que escreveu “Dez Dias que Abalaram o Mundo”, tornou--se vermelho. Warren Beatty dedicou-lhe um filme. Infalivelmente, chamou-se “Reds”.
Reed teve direito a ficar sepultado na Praça Vermelha, privilégio de que só mais dois americanos gozaram: os fundadores do Partido Comunista Americano.
Praça Vermelha: Krasnaya Ploshad. O lugar onde o belo e o vermelho se encontram em Moscovo. Um vermelho anterior ao comunismo, do tempo de São Basílio, quando o vermelho era a cor daquela grandeza que se tornava perigosa se não fosse acompanhada por uma genialidade especial.
“Estrelas, estrelas, de onde vem esta minha angústia?”, perguntava Blok, o poeta do vermelho que ficou sem sons.
Poeta finalmente preso.
Deixaram-no morrer fechado na ditadura do vermelho.
“Estrelas, estrelas, contem-me a razão do meu sofrimento!”
As estrelas contaram-lhe tudo. Estrelas vermelhas."
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