"O incrível que acontecia naqueles jogos entre o Benfica e o Sporting; Escanzelado, médicos não o queriam a jogar
1. Era o tempo em que o pouco dinheiro que se dava aos jogadores lhes era dado embrulhado em romântica justificação: «para que se possam alimentar melhor, para que tenham finanças para o médico». Também lho davam para coisas mais singelas - o Benfica pagava-lhes os bilhetes de eléctrico que os levassem para jogos e treinos.
2. No Benfica, havia, porém, uma regra: nos dias de jogo os jogadores tinham de estar no estádio duas horas antes do seu início. A ele sucedeu-lhe antes de desafio com o Sporting, o que nunca lhe sucedera: quando deu pelas horas ainda estava em casa - e já devia estar no estádio. Se fosse de táxi, o clube não lho pagava.
3. Não se atreveu a «gastar dinheiro com o táxi», correu a apanhar o «carro n.º 2», que ligava os Restauradores ao Lumiar. Aconteceu o que não deixara de suspeitar: com os eléctricos todos à pinha, nenhum deles parava. Vários passaram por entre os seus adeptos a exclamarem-lhe em euforia: «Vamos arrebentar com eles... Vamos dar cabo deles...» - e ele, cada vez mais, em ânsias, a olhar para o relógio, aflito...
4. Ouvindo-lhe os clamores, deu-lhes em brado: «Como é que posso arrebentar com eles, se não consigo chegar ao Campo Grande?» Magote de benfiquistas lançou-se para a frente do n.º 2 que lá vinha, obrigando o guarda-freios a travagem forçada. Explicaram-lhe a razão, ele entrou, logo houve quem lhe desse lugar no assento: «para arrebentarmos com eles, não pode lá chegar cansado, da viagem» (Essa é estória que se conta no blog Em Defesa do Benfica). Ao jogo chegou com ele a abrir e só se salvou da multa por ter espírito que tinha, o que levou Ricardo Ornelas a afirmar: «É daqueles que até no chão, quando os derrubam, jogam para ganhar».
5. Tratando-o como um «assombro de carácter, do mais vale quebrar que torcer, a personificação da garra no corpo franzino», a Stadium fez-lhe entrevista que começou num traço desconcertante: «Para falar com fraqueza, não sei ao certo o ano em que nasci. Ou foi em 1912 ou em 1913. O lugar isso sei e muito bem, foi em Tortosendo, à sombra da Covilhã...»
6. Viera crescidote para Lisboa, sobre ele escreveu Carlos Pinhão: «Tinha fome de bola mas com aquele ar magricela, escaveirado, pensava-se que era muito bem capaz de ter fome, fome mesmo. Dizia-se que tinha vindo de Tortosendo, era calceteiro e, de aí, desse trabalho violento lhe viria a sua incrível e extraordinária resistência...»
7. Andava pelos 14 anos quando foi às Amoreiras, à beira da casa pobre onde vivia, oferecer-se para jogador do Benfica. «Aceitaram-me mas fui reprovado na inspecção médica. Nunca deixei de dar os meus pontapés, acabei por voltar e por jogar...»
8. A jogar pelo Benfica só começou aos 18 anos, nos primeiros tempos com boina basca na cabeça - e foi o que Pinhão também disse que ele era: «Escanzelado, vibrante e reinadio como o melro do Junqueiro, enchia o campo todo, ia a toda a parte, onde a bola, estava ele. Custava-lhe imenso despegar-se dela, não descansava enquanto dela não se reapossasse».
9. Foi na época de 1932/33 que Ribeiro dos Reis o puxou o para a primeira equipa por Gustavo Teixeira, lesionado, não poder jogar a médio centro. O médio centro passou a ser ele, sempre ele. Firmino Moita, que tinha negócios de café no Beato, deu-lhe emprego como vendedor e pagou-lhe a escola para deixar de ser o que era: analfabeto. Largou a boina vermelha, apareceu de correia de coiro no pulso: «Usei-a por ter pulso aberto, correu-lhe bem, não mais a larguei».
10. Por meados de 1935, voltou a bolandas, lamuriou-se: «Ameaçaram-me outra vez de não poder jogar mais, estar inapto. É estranho: sim, sempre fui fracalhote, mas é a jogar que eu me sentia melhor, com mais pulmão. Não sei, sinceramente, o que é que ou doutores veêm de mal em mim». Junta médica acabou por salvá-lo, continuou a jogar até 1945. No dia do adeus tinha seis campeonatos, três Taças de Portugal, um Campeonato de Portugal e dois Campeonatos de Lisboa - e era o Tempero. «Porque, logo no início, ainda nas Amoreiras, lá na cabine, com a pressa de pedir o dinheiro que me competia pelo treino, exclamei: 'Então quando vem esse tempero?' - e Tempero fiquei a ser...»."
António Simões, in A Bola
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