"Em epígrafe, o título do livro de Gustavo Pires e António Cunha que tive a honra e o prazer de apresentar. Este livro consubstancia, além dos investimentos específicos de cada um dos autores, a síntese dos profícuos diálogos entre estes dois profundos conhecedores da coisa desportiva.
Contudo, antes de falar da obra tenho de falar dos obreiros. Falar de António Cunha (AC) é falar de um homem do desporto a quem estou ligado não só profissionalmente, mas também emocionalmente. A nossa relação teve choques e apaziguamentos, mas permaneceu sempre indelével um elo de respeito e admiração que nos permite, hoje, momento em que as guerras estratégicas da vida se refugiam nas caves calmas da memória, manter uma amizade que é o viático mais importante para todos os primeiros dias do resto das nossas vidas. AC foi meu professor, em 1974-1975, fase revolucionária em que nós, alunos, púnhamos tudo e todos em causa. AC, e é esta a primeira vez que lho estou a dizer, mais que nosso professor de andebol que o foi e bom, foi o companheiro mais avisado que nos evitou alguns dislates fortuitos que poderiam ter feito perigar a dignidade da nossa formação académica. Embora, pouco mais velho que muitos de nós, sempre teve uma espécie de presciência acerca do que estava bem e estava mal. Essa precoce sabedoria relacional e comportamental veio-lhe, de certeza, da sua condição de treinador que ele assumiu desde muito cedo. Na sua ascensão como treinador de elite de andebol, várias vezes pediu a minha colaboração. Estive ligado, superficialmente mas com muito prazer, à aventura mais desafiante e gratificante que AC teve na sua vida – o ABC. Após o primeiro título nacional deste novel clube recebo, com muita surpresa, o agradecimento formal do ABC assinado pelo presidente do clube. É isto, sim. A gratidão é a matriz mais forte da personalidade de António Cunha.
Que dizer de Gustavo Pires (GP)? GP colabora com a nossa faculdade há muito tempo, mas somente há uma dúzia de anos é que começamos a ter contacto mais directo. Ouvi-o num seminário e gostei do que ouvi e, a partir daí, nunca deixei de o ler. Porquê? Porque mesmo os escritos mais singelos estão perpassados por uma inteligência arguta denunciadora de profundo estudo e reflexão. GP é um emissor profuso de locuções inteligentes e profundamente respaldadas na realidade, mesmo que episodicamente estejamos desencontrados dele numa ou outra das suas ideias. É um filósofo arguto e inquieto, na linha de outros grandes pensadores da coisa desportiva que emergiram a partir do 25 de Abril. GP é um dos vértices do triângulo dourado que marcou o mais elevado pensamento sobre o desporto após a revolução de Abril – Manuel Sérgio, Jorge Olímpio Bento e Gustavo Pires. Não me digam que há outros, pode haver, mas estes são as minhas referências e tenho direito à minha taxonomia.
Falemos agora da obra.
Uma obra escrita pode ser dissecada por três tipos de leitura: leitura literal, leitura sintomal e leitura hermenêutica. Esta obra dispensa a leitura hermenêutica pois não tem sentidos escondidos, é cristalina como a água da montanha correndo límpida por entre pedras.
Entrei nela através de uma leitura literal, inocente, permeável ao fluxo das ideias e gozando o prazer de revisitar tempos e lugares que foram genésicos para minha formação. Foi tanto o deleite da leitura que me perdi na perscrutação da obra e aí fui eu até ao fim, numa digressão de puro prazer que só terminou na última linha. Por isso, tive de fazer uma segunda leitura, a leitura sintomal, tentando descortinar lógicas e sentidos, erros ou omissões, fraquezas ou potencialidades.
Antes de mais, a obra de GP e AC permitiu-me revisitar campos de interrogação que me formaram e estavam imersos no limbo da memória. Regresso vívido e transformador ao passado.
O livro tem partes e capítulos muito fortes e outros menos bem conseguidos. Posso afirmar que, para mim, o livro é ouro em 90% e simples prata nos restantes 10%. Isso é óptimo dizeis vós todos, pois essas percentagens são raras de obter em qualquer obra literária, mas eu digo, está mal porque estes homens têm a obrigação de escrever sempre tocados pela aura da infalibilidade. Como são escassas, passemos às partes menos bem conseguidas. Um certo repeticionismo de autores ou situações que nos obrigam a reencontrar 100 linhas abaixo o que a montante já tinha sido bem expresso. A recorrência a autores menores ao lado das grandes luminárias do pensamento humano (não cito os autores menores pois podem ser maiores para outros e seria estultícia da minha parte arvorar-me em definidor do que deve estar inscrito nas tábuas da lei) e a ausência de um sentido crítico mais apurado de algumas personagens e situações. O que mais gosto em GP é a sua tendência polemista, a sua verticalidade analítica, a sua coragem política e sociológica, a sua ingente luta pela verdade. Neste livro, tomou do seu mestre Manuel Sérgio a tolerância e a bondade e ficou-se por leves afloramentos críticos, o que talvez deva ser apanágio de uma obra pedagógica como esta. Este livro é um tratado de Pedagogia do Futebol, do Desporto, da Vida e, talvez se não justificasse um pendor crítico mais acentuado. GP e AC, neste livro, são mais professores e menos mineiros da realidade. Denunciaram, sem magoar, muitos dos miasmas que corrompem o desporto português. Deixaram falar primacialmente a sua costela pedagógica, abrindo muitas portas abertas para outros investimentos heurísticos. E é essa uma das qualidades supremas desta obra. O impulso que nos leva a querer estar com eles na aventura de decifrar a realidade do desporto. E digo bem alto e perdoem-me o plebeísmo, porra, eu queria ter estado ao lado deles nesta aventura cultural. Eu tinha querido acrescentar ao seu diálogo o aporte de mais de 50 anos a viver o desporto como finalidade existencial e, principalmente, a riqueza das vivências que tive em 20 anos no futebol. Este livro convoca-nos, a todos nós homens e mulheres do desporto, a, em cada capítulo, acrescentarmos a súmula das nossas mais vívidas experiências.
Eu, poderia estar aqui a discorrer um ano seguido sobre o efeito revolucionário que este livro provocou em mim, porque a construção do caminho encetado por GP e AC vai paralelo e por vezes cruza-se com o caminho que construí para mim. Somos compagnons de route, na aceção nobre e não política do conceito. Somos companheiros de caminho porque desde muito jovens assumimos como referência existencial o aforismo de Machado: “Caminante no hay caminho, se hace caminho al andar”. A sua história pessoal dá boa nota acerca dos muitos caminhos que tiveram de desbravar.
Quais as ideias mais fortes que sobressaem deste livro? Porque o tempo escasseia vou fixar-me somente em três.
- A competição desportiva é uma metáfora da guerra.
- A prática é o critério supremo da teoria.
- O pensamento estratégico prepara o presente, baseado no passado e procurando inteligir o futuro.
Cada uma destas macro ideias consubstanciam mundos maravilhosos por perscrutar ou recuperar.
Deste livro sobressai clara a similitude entre guerra e a competição desportiva. A génese do desporto tem a guerra como referência. Quando em 776 a. C., supostamente a data dos primeiros jogos olímpicos, o cozinheiro Coroebus de Elis, ganhou a corrida de estádio, a dimensão religiosa dos jogos era preponderante. Menos de 80 anos depois já a expressão desportiva dos jogos assimilava muita da lógica militar e belicista da preparação da juventude que devia estar preparada para, no campo de baralha, defender a honra e os interesses da sua polis. Mas, se quisermos ir mais longe na história biológica do Homem, podemos verificar a prática da corrida como predominantemente instrumental nas lutas de sobrevivência contra os predadores e domínio de território. Podemos por isso afirmar que a excelência motora determinou a evolução da espécie humana, a sua fixação a um território, o ganho e domínio de novos territórios, e a afirmação étnica dos vários grupos pré-humanos e proto-humanos. Por isso, as guerras explícitas ou subliminares que derivam do choque de interesses entre Porto, Benfica e Sporting, nada mais são que o regresso a um guião biológico que tem sede nas zonas hipotalâmicas do nosso cérebro e que pouco são tocadas pela roupagem cultural que o homem sócio histórico foi progressivamente vestindo.
GP e AC, tenho a certeza, tiveram longas conversas sobre Prática e Teoria. Este é um dos temas recorrentes no areópago dos teorizadores das competências. Os autores evidenciaram bem o contraste, o choque mesmo, de opiniões. E a solução, como um imperativo absoluto, não existe. A prática é o critério supremo da teoria, só que existem várias competências práticas. Eusébio, segundo Humberto Coelho, tinha um afinadíssimo computador dentro da cabeça. Analisava e antecipava jogadas que o tornavam num felino económico que estava sempre no sítio certo no momento certo sem grande dispêndio de energia. Esta competência prática alcandorou-o a deus dos estádios, mas não lhe deu expertise suficiente para vingar como treinador. Existem várias competências práticas e várias competências teóricas e por isso, o conflito teóricos-práticos é um logro que esconde, talvez, mesquinhos interesses corporativos.
Para terminar, abordo o pensamento estratégico como antecipador da realidade, que os autores tão bem desenvolveram. Fica-me, como mensagem a ambiguidade do futuro. Tal como nos ensina Popper, existem tantos mundos em aberto quantos a nossa imaginação puder criar, por isso, todo o pensamento estratégico tem de estar, desde o início, contaminado com o vírus da incerteza. É essa a arma que devemos possuir quando queremos abordar sistemas dinâmicos que não se deixam prender em lógicas fixistas.
O parto deste livro foi custoso e demorado; logicamente que a profundidade que revela não era compatível com pressas e afloramentos. Está aqui muito pensamento, e o pensamento cansa. Só desejo que os autores recuperem depressa e nos permitam continuar a receber o s frutos dos seus investimentos."
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