"Esta minha experiência de escrever sobre outros foi extremamente agradável e gratificante, deu-me saúde mental, prazer, sobretudo conferiu-me o bonito sentimento de fazer justiça. Falar sobre mim, reconheço, foi algo esquisito, nunca tive semelhante prova, não me parecia (nem parece) adequado ao meu feitio, à minha sensibilidade. De facto, algo que nunca pensei, muito menos me preparei para o efeito. E continua a parecer-me um tanto descabido.
Este desafio, que o meu grande amigo João Malheiro me propôs, de escrever 'coisas' sobre pessoas que fui conhecendo, numa altura em que a vida me conduziu (im)piedosamente para os 70 anos, afigurou-se-me irrecusável, apesar de alguma teimosia inicial. Conheci, trabalhei e associei-me a muita gente ilustre da bola e de outras sensibilidades. Aceitei o repto com paixão, dediquei-lhe algumas horas, nas mais diferentes latitudes, sempre com alegria, até com entusiasmo crescente. Eu e muitos outros, escritos pela minha pena, resultou num testamento de vida(s), cujo interesse só o leitor pode avaliar, mas o meu apego, confesso, foi inquestionável.
Talvez não saiba falar de mim, mas recordo e tenho bem presente opiniões de outros, em circunstâncias e pretextos diferentes, que me parecem de todo oportuno aproveitar para este documento. Efectivamente, gente com visão, gente com experiência, gente ilustre. Gente para quem o jogo ao mais alto nível proporcionou opiniões do... mais alto nível. Gente, do Futebol, no Futebol que eu amo, da melhor de sempre, da que fez história, da que cativou lugar na história.
Uma deles, logo à cabeça, o nosso Eusébio, passo a citar, com proximidade, quase absoluta: 'Simões foi, para mim, aquele que melhor compreendeu e se relacionou com a minha capacidade, cultura e inteligência de jogo; aquele que melhor percebeu o meu futebol, o que que queria e, por vezes, até o que eu não queria; Simões foi o companheiro cujo Futebol pensado e bem jogado pertenceu à minha universidade, a do bom futebol'. Agora, acrescento eu, António Simões da Costa: privilégio foi para mim ter estado à altura de o perceber, de vir a ter o reconhecimento público do Senhor Futebol, o enorme senhor Eusébio.
Outra enorme figura, Pelé, um dia, algures nos Estados Unidos, quando por lá jogámos, em tom amistoso, teve um impulso carregado de genuidade, afirmando, na minha frente, dirigindo-se também aos seus companheiros do Cosmos, equipa que representou e na qual terminou a sua fantástica carreira, concretamente dizendo: 'Cuidado com este 'baixinho', não deixa chegar bola nele, não deixa organizar, não deixa pensar o jogo'. E, voltando-se para mim, olhos nos olhos, rematou: 'Tá baixinho? Vou mandar cair em cima de você'... Considerei aquele momento, e ainda hoje considero, uma observação gostosa e lisonjeira do reconhecimento, da valia, da competência que porventura eu patenteava. Foi na Califórnia, corria Julho de 1976.
Artur Jorge, o homem académico, da criativa Coimbra, da Académica e do Benfica, esse reconhecido intelectual do Futebol, celebrizado pelo seu singular pontapé-moinho nos relvados ou até pelados. Foi um estimado companheiro dos melhores anos do esquadrão vermelho. Um dia, numa atitude de reconhecimento, para com a minha carreira, não dirigindo-se a mim, mas a outros, que por sua vez me fizeram eco da mensagem, afirmou: 'Simões foi o número dois; depois do Eusébio, tratou-se do melhor'. Testemunho de um homem que sabe cultivar a independência, conhecedor como poucos, e já muito depois de ambos termos terminado o nosso trajecto de jogadores profissionais.
Referência também, se calhar a maior testemunha, refiro-me imodestamente, não na voz de ninguém, mas devido à minha presença honrosa em jogos de carácter único, de fisonomia muito especial. Ter participado em desafios, nos quais estiveram os melhores executantes da minha época, alguns reconhecidamente considerados os maiores de sempre, casos de George Best, Bobby Charlton, Yáshim, Becknbauer, Cruijff, Pelé e, claro, o nosso querido Eusébio, entre muitos outros. Diria que fui a julgamento, o julgamento da competência e do saber. Dai-me conta de que fui bem aceite e não menos bem aprovado. Por um simples gesto, razão, talvez efeito. Percebi que não houve reservas em me passarem/darem a bola e perceberem, todos eles, que seguramente teriam de volta a bola em condições jogáveis. A bola aprumada, a bola bonita, a bola de qualidade que todos exigiam, como o mais elementar e fundamental sinal (para eles), da mesma forma o mais simples ou reconhecimento para quem sabia jogar com ADN do verdadeiro bom Futebol. O Futebol bem jogado, o Futebol de todos esses monstros consagrados da bola universal."
António Simões, in O Benfica
...""deu-me saúde mental,""...
ResponderEliminarMais vale tarde do que nunca.