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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Bosman: 30 anos da revolução que transformou o futebol


"Uma borboleta bate as asas algures e isso cria uma tempestade noutro ponto do globo. Um anónimo futebolista belga bate as asas, o efeito passa pelo Luxemburgo e isso cria uma tempestade em todos os outros pontos do globo.
Jean-Marc Bosman era um jogador desconhecido. A sua vida teria passado indiferente à maioria da humanidade, não fosse a vontade de levar o que entendia ser uma tremenda injustiça a tribunal.
Era 1990. O Estrela Vermelha, de Belgrado, estava a meses de se tornar campeão europeu. Bosman vira o seu contrato com o Royal Football Club de Liège terminar, pretendendo aceitar uma oferta do Dunquerque e ir jogar para França.
Jogador livre, negócio a custo zero, movimentação feita. Sim? Não. Isso é o pós-Bosman que Bosman não viveu.
Por muito que o contrato tivesse terminado, o RFC Liège podia exigir o pagamento de uma compensação ao Dunquerque, uma prática que, por exemplo, não existia em Portugal (note-se as idas a custo zero de Futre, Rui Águas e Dito para o FC Porto ou de Jaime Pacheco e Sousa para o Sporting). Ora, o valor pretendido pelo Liège era quatro vezes superior ao que os belgas inicialmente haviam dado pelo futebolista. Os franceses não acederam ao montante pedido. Simultaneamente, o novo vínculo que o RFC Liègue ofereceu a Bosman era quatro vezes menor do que o anterior.
Jean-Marc sentiu-se preso. Sem força para sair de um contrato que terminara, mas que ainda dava ao empregador anterior poder sobre si. E foi para a justiça, abrindo não um, mas três casos: Bosman contra a Federação Belga, Bosman contra o RFC Liège, Bosman contra a UEFA.
Os processos foram avançando, chegando ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sob a forma única de “Caso Bosman”. Jean-Marc, naquele altura, já não era um desportista, era um símbolo, quase nome de código, palavra que definia um conjunto de normas jurídicas em disputa.
A decisão foi anunciada a 15 de dezembro de 1995, meses depois de o Ajax sagrar-se campeão europeu. O TJUE decidiu que, estando em causa a liberdade de movimentação dos trabalhadores dentro do espaço comunitário, qualquer jogador poderia sair a custo zero no fim do contrato. Adicionalmente, como não se podiam discriminar outros cidadãos comunitários dentro do espaço da União Europeia, declarou-se que teria de deixar de haver número limite de estrangeiros que podiam alinhar nas ligas nacionais e nas competições europeias.
Nunca o veredicto de um tribunal teve tanto impacto na história do futebol. Naquela década cheia de mudanças que impactariam o jogo — a criação da Premier League, o nascimento da Liga dos Campeões, a realização do Mundial nos Estados Unidos, a chegada massiva do dinheiro da televisão por cabo a Itália, Inglaterra ou Espanha —, nenhuma mexeu tanto com a correlação de poder como as consequências de Bosman.
Sem estarem presos ao antigo clube, os futebolistas ganharam força negocial, podendo aguardar pelo fim do contrato para receberem em prémios de assinatura ou salários o que poderia ser pago em transferências entre equipas. Ainda mais importante foi o fim das fronteiras, o cessar das limitações na composição dos plantéis.
Os clubes de mercados mais fortes — que estavam a ficar mais fortes com o dinheiro da televisão paga que começava a inundar esses países — já não tinham limites para abarcar o talento das ligas financeiramente menos robustas. O processo de acumulação de qualidade foi irreversível, numa bola de neve que juntava melhores jogadores a melhores equipas, melhores equipas a melhores resultados, melhores resultados a mais dinheiro, mais dinheiro a mais fama. O que dava melhores jogadores, e assim sucessivamente.
Em Lisboa, Glasgow, Amesterdão ou Belgrado, os sonhos europeus foram minguando. Os que antes eram adversários tornaram-se compradores, numa relação predatória. O que antes era esperança de vitória tornou-se perspetiva de lucro.
Nos 10 anos antes de Bosman, houve campeões europeus vindos dos Países Baixos (Ajax), Itália (Milan), França (Marselha), Espanha (Barcelona), Jugoslávia (Estrela Vermelha), Portugal (FC Porto) e Roménia (Steaua Bucareste). Sete países diferentes, quatro deles fora das chamadas big 5.
Nos 30 anos depois de Bosman, só houve um campeão fora das big 5, o FC Porto, e tal já se deu há mais de 20 anos. Meses depois do início do caso, o Estrela Vermelha foi campeão europeu. Meses antes da conclusão, o Ajax foi campeão Europeu. Agora que se cumprem três décadas do veredicto, vejamos os campeões europeus das cinco últimas temporadas: PSG, com odinheiro do Catar; Real Madrid, que é o Real Madrid; Manchester City, com o dinheiro de Abu Dhabi; Chelsea, com o dinheiro de Abramovich.
O melhor que Ajax ou PSV, Benfica ou FC Porto, Dinamo Zabreg ou Celtic podem fazer é agradecer por ainda haver uma Liga dos Campeões que lhes permite participar, e não uma Superliga sem eles.
Portugal tinha mais títulos de campeão europeu que França (ainda tem o dobro, atenção), Glasgow contava mais Taças dos Campeões que Londres, Amsterdão apresentava mais troféus da principal prova europeia que Barcelona. Mas a realidade que permitira tais feitos já não existia.
Os países longe dos maiores mercados tornaram-se especialistas em ver os seus melhores longe de casa. Última competição que os Países Baixos disputaram antes de Bosman? Mundial 1994: 14 futebolistas (em 22 convocados) jogavam na Eredivisie. Países Baixos no Euro 2024? Só seis homens (em 26) representavam clubes neerlandeses.
Última competição de Portugal pré-Bosman? Euro 1984: todos os convocados jogavam em Portugal. Portugal no Euro 2024? Seis convocados (em 26) estavam na I Liga. Última competição da Jugoslávia antes de Bosman? Mundial 1990: 13 (em 22 escolhidos) estavam na liga local. Croácia — a mais bem-sucedida equipa das nações que saíram da Jugoslávia — no Euro 2024? Seis escolhidos (em 26) na competição doméstica.
E Bosman, que foi feito dele? Do homem, da pessoa, não do processo? A batalha jurídica desgastou-o. Tornar-se uma causa, e não um ser humano, foi demasiado pesado. Passou por uma depressão, divorciou-se, teve problemas com álcool. Em 2020, confessou que vivia dos €2 mil que a FIFPro, união internacional de sindicatos de jogadores, lhe pagava.
“Estou orgulhoso de ter libertado milhares de trabalhadores europeus, mas passei muito mal depois daquela luta”, admite. A luta que revolucionou uma das mais populares expressões culturais da história da humanidade."

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