"De olhos espantados com o tempo, nariz macerado pelas milhares de boladas perdidas-partidas, sem mais de metade do cabelo, queixo esfregado, mono-sobrancelha e lábios como uma seta assinalando a saída de campo para uma triste reforma, a cabeça do Zé Matreco já não se recomenda a ninguém.
E, no entanto, quanto golos. Quantas vitórias. Quantos gritos histéricos de crianças, cervejas emborcadas por adultos, confusões criadas por bolas que talvez tenham entrado e saído de balizas de madeira que entretanto foram escaqueiradas para servir de calor em lareiras dentro de casas que também já não existem.
Ficou só esta tua imagem de boneco escanzelado, de mãos nos bolsos, pés juntinhos, tímidos, lesões nos joelhos e um vermelho na camisola que persiste-insiste como se fosse o último dos sonhos de um goleador de excepção. Ali, na linha da frente, comandado por mãos talentosas e outras nem tanto, Zé Matreco marcava golos de todas as formas: de bi-biqueira, com a nuca, com o nariz, com a alma. Às vezes, bastava um raspão com efeito elíptico para a redonda ir devagarinho parar ao abismo de um épico 5-4 que fechava o jogo.
Se hoje o tempo fez deste matreco esta ruína de trazer por casa, pelo bolso de alguém que o encontrou na Feira da Ladra?, na parede do Panteão, junto ao Eusébio e à Amália?, não nos enganemos: Zé Matreco já foi esbelto, já teve os joelhos impecáveis, os lábios carnudos, duas gloriosas sobrancelhas, o nariz afilado, aquilino, o cabelo iluminado pela patine de um boneco feito a preceito de craque. Aqueles dois pés juntos já tiveram a curva perfeita para goleadas sem fim.
Perdemo-nos na contabilidade: terão sido cerca de dois milhões de golos, mais coisa menos coisa. Sempre com a mesma limpeza profissional, sem gozar com os adversários, sem se pavonear. Zé Matreco marcava o golo e mantinha-se impávido e sereno, apenas sendo recolocado novamente na vertical por mãos talentosas e outras nem tanto. Preparado para o ofício de rematar em folha-seca para a caixa de som que era a bola no fundo das redes de madeira. Uma e outra vez. Duas vezes. Mil vezes. Milhões de bolas, toc-toc, a cutucar o golo. Pés de ferro, bola, remate, madeira toc-toc, golo-golo.
Bonito-bonito seria conseguir encontrar os dois parceiros goleadores de Zé Matreco naquela linha ofensiva de caminhos-de-ferro para as balizas adversárias. Por onde andarão Quinzinho Matraquilho e Tó Ferrinho, os alas que ajudavam o goleador a azucrinar os guardiões do Sporting? É possível que já nenhum se mantenha no activo. O mais provável é que, tantos anos depois, um tenha acabado a fazer de bibelô periclitante na sala do dono do café Roscas e o outro, enfim, o outro tenha simplesmente desaparecido debaixo de uma levada de chão que acimentou o pátio traseiro daquele extraordinário estabelecimento comercial. Paz às suas memórias de ilegais roletas.
Apetece voltar ao princípio: à estrada entre a Anadia e Águeda. Perto da aldeia de Coito. Às fundações da fábrica Bilhares Carrinho - Bilhares, Matraquilhos, Bowling, Entretenimento. Voltar a esse 28 de Fevereiro de 1964 que viu nascer Zé Matreco para a ribalta de um mundo de alegrias e golos e jogos que nunca mais acabavam madrugadas adentro.
Obrigado, glorioso boneco. O teu coito goleador foi interrompido, mas aqui, no Clube Romântico de Futebol, continuas a ser relembrado como um dos melhores pontas-de-lança da tua férrea, ferrenha, fictícia, fabulosa, feliz geração."
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