"Sendo o desporto a única actividade mobilizando sem interrupção a atenção dos humanos como nos diz Robert Redeker (1), seria conveniente sabermos – ou tentarmos saber – quais os efeitos que produz na sociedade. Daí o título deste este artigo: é o desporto uma indústria ou um comércio?
Quando, falando sobre o futebol e a pandemia, Aleksander Ceferin, Presidente da UEFA, nos dizia que “para ser honesto, o futebol é provavelmente uma das indústrias mais seguras” («O Jogo», 16.11.2020, p. 40), de imediato nos vem à memória a fábula de Antoine de Bierce (2) intitulada «A ovelha e o leão»:
“– Tu és uma besta de guerra – disse a Ovelha ao Leão – e, no entanto, os homens andam sempre a ver se te conseguem apanhar. A mim, uma crente na não-resistência, não me dão caça. – Não precisam – redarguiu o filho do deserto; – podem criar-te.”
Vindo aquela afirmação de quem vem, de imediato se começa a construir dentro de nós, se não analisarmos friamente os conceitos e de um modo crítico, que o desporto actual é uma indústria. Um desporto actual pós-moderno que possui todas as características do desporto moderno, sendo estas acrescidas de exigências sistemáticas de espectáculo, de interacção com os ‘mass media’, com a política e com a economia, da presença do negócio, da técnica, da ciência e do profissionalismo, o qual é regulado por mecanismos jurídicos.
Vítimas do cartesianismo, dividimos, compartimentamos e tudo classificamos (ou rotulamos!). Quando somos invadidos por termos como sustentabilidade, estabilidade e crescimento, pandemia, confinamento, reinvenção, resiliência, mitigação, novo normal, estado de emergência, ‘lay off’, apoios, linha da frente, restrições, cerco sanitário, desemprego, infectados, internados, casos positivos, casos suspeitos, casos confirmados, casos recuperados, óbitos… o desporto não escapa à banalização da sua classificação. E menos escapa a tentativa de nos fazerem acomodar a certas classificações…
Fernando Seara também alinha por este diapasão («A Bola», 14.02.2021, p. 31) quando afirmava que “por cá, e no nosso futebol, a incerteza é muita, a angústia financeira imensa e a não proteção da indústria bem perturbante.” Tal como Sónia Carneiro quando também nos dizia que dependem da Liga Portuguesa de Futebol Profissional “clubes, jogadores, treinadores, funcionários e toda uma indústria que tem servido de ópio e de dinamizador para uma população portuguesa” («O Jogo», 05.04.2020, p.15) num artigo em que apresenta o futebol como “uma indústria tão importante para a economia do país” e em que apresenta o facto de a mesma estar “a trabalhar no regresso, tão importante que é para esta indústria.” Aliás, foi precisamente Sónia Carneiro («O Jogo», 09.08.2020, p. 19) que nos revelou que o Ministro da Economia e Transição Digital, Pedro Siza Vieira, reconheceu o futebol como indústria na conferência «O Futebol Profissional e a Economia pós-Covid19».
Muito basicamente começaremos por definir «indústria» como qualquer actividade que vise a manipulação e a transformação de uma matéria-prima com vista à obtenção de um produto que seja considerado um bem de consumo e «comércio» como toda e qualquer actividade de troca, logo de compra e venda, de mercadorias ou de produtos.
Será, de facto, o desporto uma indústria? Para o ser necessita de matéria-prima, da sua transformação e da obtenção de um produto.
Quando Jorge Bento (3) nos apresenta a proporção de factores pedagógico-didácticos e lógico-objectivos na configuração da matéria de ensino em Educação Física, apresenta um valor de cerca de 85% para os primeiros e cerca de 15% para os segundos na educação motora no ensino pré-escolar, sendo que os primeiros vão progressivamente diminuindo até se chegar ao ensino secundário e ao ensino superior e os segundos vão proporcionalmente aumentando. Poderemos fazer um ‘transfer’ destes valores para a fase de formação no desporto até se chegar à alta competição, ao rendimento e/ou ao espectáculo. Logo, poderemos considerar que temos aqui numa fase inicial uma matéria-prima que é trabalhada, o formando, transformada mais tarde no produto final – o desportista. Fase que vai desde o início até ao momento em que sensivelmente os factores pedagógico-didácticos e lógico-objectivos se equilibram na ordem dos 50% (após passada a fase de formação, sensivelmente no final da fase de pré-especialização). É o tempo em que as habilidades motoras fundamentais são transformadas em habilidades desportivas. É o tempo em que as potencialidades são transformadas em capacidades, em competências. Portanto, poderemos assim considerar até aqui o desporto, na realidade, como uma indústria. E esta é uma primeira etapa em que os efeitos do desporto se reflectem mais sobre o próprio indivíduo.
E a partir daqui?
A partir daqui entraremos numa etapa em que os efeitos do desporto se reflectem mais sobre a sociedade, influenciando-a no seu aspecto estrutural e económico. Voltando a Redeker (1), “longe de ser um ópio que adormece, o desporto é uma matriz de tipos humanos tanto quanto de tipos de sociedade. Portanto, ele não é um reflexo - segundo a crença de uma sociologia monótona e preguiçosa, o futebol refletirá a sociedade, para o bem e para o mal -, mas o contrário: o desporto estrutura a sociedade, modela-a, força-a a si mesma a parecer-se consigo.” É a face visível do desporto.
E começaremos por recorrer exactamente ao título do artigo de Sónia Carneiro – “Desporto é espetáculo” («O Jogo», 14.07.2021, p. 21). Se o desporto não existe sem movimento, sem jogo, sem agonística, sem projecto e sem instituições (modelo pentadimensional de Gustavo Pires), ele também não existe sem espectáculo.
Começa-se com a ‘sponsorização’ do desportista, entra em funções a publicidade, o ‘marketing’, o ‘merchandising’, os direitos de imagem, as contratações e os salários, as compras e vendas de jogadores, as cláusulas de rescisão, os direitos televisivos, as SAD’s, os investimentos imobiliários… o que vem de imediato demonstrar o fosso existente entre as duas etapas acima referidas.
Interpretar o desporto actual revela-nos que a importância dos resultados é mais económica e política que desportiva e que o lucro constitui a base do seu desenvolvimento, desenvolvimento esse que acaba por gerar novo lucro – é o retorno do investimento –, encontrando-se o corpo do desportista mercantilizado e submetido a uma exploração mecânica e química sendo a saúde humana secundária, com destaque para uma subordinação deste mesmo corpo ao rendimento com uma consequente desvalorização ética, moral e axiológica. E de novo nos vem à lembrança Antoine de Bierce (2): “Um político que assistia a uma sessão da Câmara de Comércio pediu a palavra, mas viu a sua pretensão negada com base na alegação de nada ter a ver com o comércio. – Senhor Presidente – disse um Membro Idoso, levantando-se: – considero a objecção infundada. Este cavalheiro tem uma estreita e íntima relação com o comércio: ele próprio é uma mercadoria.”
O jogador não é mercadoria só ao ser vendido e comprado pelos clubes. Temos de ver mais longe… No final dos jogos, para aplaudir os adeptos, Neymar recebia 375 mil euros… Thiago Silva recebia pelo mesmo 33 mil euros… em 2019. O Bournemouth cobrava 204 euros aos pais de cada criança que entrava em campo de mão dada com um dos jogadores da sua equipa de futebol… o Everton cobrava 790 euros… também em 2019. Exemplos que falam por si!
O desporto actual, na sua máxima expressão, tem de ser encarado como uma actividade económica que não gera nem bens, nem obras, nem cria riqueza – apenas a movimenta em determinados sentidos. Actualmente o desporto não é só consumido pelo espectador em directo: passámos da época do relato radiofónico e do jornal em papel para a época da imagem e, na sociedade actual, o desporto é consumido não só através da TV mas também da ‘internet’. A resposta à pergunta “o que produz um jogador de futebol?” é pertinente. Produz espectáculo (e o consumidor desloca-se ao estádio, paga o seu bilhete, leva a sua camisola que já adquiriu antecipadamente, compra o seu cachecol… ou fica sentado no sofá inundado por diversos estímulos… pagando a electricidade e a ‘internet’ depois de ter adquirido os necessários ‘gadgets’) e produz a necessidade do espectador consumir os produtos cujas imagens absorve subliminarmente e expressas na sua camisola, nos calções, os logos das marcas desportivas, nos painéis do estádio, durante o próprio evento na TV e simultaneamente com o mesmo ou ainda nos anúncios no intervalo da transmissão televisiva.
O espectáculo é um argumento de peso e que tem de ser tido em conta para se classificar o desporto como comércio com todas as consequências inerentes. Já em 1925, Pierre de Coubertin (4) no seu discurso de demissão do Comité Olímpico Internacional pedia para o desporto se pôr em guarda contra o profissionalismo, pois “o organizador de espectáculos tende a corromper o atleta para melhor satisfazer o espectador.” Mas em 1999 Juan Antonio Samaranch (5) solta o seu grito do Ipiranga: “We said ‘yes’ to commercialization (…)”!
Por último, e para darmos resposta à pergunta inicial, uma resposta fundamentada que nos leve a uma verdadeira classificação desta actividade, detenhamo-nos no que nos diz Paul Yonnet (6) e façamos a necessária reflexão: “é o uso do utensílio que faz a classificação da actividade, não o utensílio por si próprio.”"
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