sábado, 17 de dezembro de 2022
Catarses 3️⃣3️⃣ Mundial é quando a FIFA quiser
"Chega ao fim o mais controverso campeonato do Mundo de sempre.
Disputado num país anacrónico em que o principal desporto é a corrida de camelos.
Disputado num país onde o dinheiro se sobrepõe a qualquer valor humano por direito.
Disputado graças a uma teia de corrupção à escala planetária, dos pratos de migalhas para os dirigentes do futebol aos contentores de euros para os políticos de Bruxelas.
Disputado pela primeira vez no meio de uma época desportiva sem respeito pelos jogadores, cujo esforço extraordinário vai certamente prejudicar as performances das equipas no segundo semestre, e, portanto, sem respeito pela saúde da própria indústria do futebol, mantida pelos clubes e pelas ligas e não pela FIFA.
Disputado em estádios faraónicos, autênticas necrópoles de trabalhadores inocentes, doravante condenados a uma vida de elefantes brancos, sem préstimo nem justificação, num país onde a média de espectadores é inferior a mil pessoas por jogo na principal liga.
Disputado num ambiente artificial de festa ecuménica, paredes meias com a repressão ideológica e religiosa que condena à morte filiados do futebol só porque defendem direitos básicos das mulheres.
Do Mundial do Catar, talvez o pior de sempre, salvaram-se os profissionais, os treinadores e os jogadores, que alguém uma vez disse, profeticamente, que são o “melhor do futebol”. Apesar do péssimo nível das arbitragens, sacrificado pela necessidade de satisfazer as clientelas regionais da FIFA.
Os jogadores deram tudo em situações adversas, para satisfazer os caprichos dos novos césares nas tribunas e para gáudio das galerias acéfalas, como na Roma do poeta Juvenal, inconformado com a hipócrita política social de distribuição gratuita de comida e acesso aos jogos dos coliseus: “pane et circenses”.
Milenar contradição essa do filósofo romano também autor da expressão “Mens sana in corpore sano”, que alguns atribuem a uma Grécia olímpica onde não se escrevia em latim, de usar a saúde dos atletas para manipular as vontades dos povos: “o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude”, escreveu Juvenal na sua Sátira X.
É óbvio que os dirigentes do futebol mundial não seguem os Clássicos.
O próximo Mundial, em 2026 na América do Norte, será expandido de 32 para 48 selecções, o que significa que um em cada quatro países será finalista. Foi a solução proposta por Platini, primeiro, e agora por Infantino para distribuir o mal pelas aldeias, assegurando a reeleição pelo voto dos pequenos países, mas vulgarizando a um nível infra-competitivo o que era supostamente entendido como o máximo desafio deste desporto.
E porquê?
Porque a nova fórmula expandirá a competição de 64 para 80 jogos, concentrados no mesmo número de dias, quase um milagre da multiplicação, dos pãezinhos e dos circos, à razão de 120 milhões de euros por cada jogo a mais - que é o valor estimado das receitas de cada partida do Mundial para a FIFA, que, tudo somado, em 2026 deverão rondar os dez mil milhões de euros.
Ou, quem sabe, para a monstruosidade de 104 jogos em 32 dias, como a FIFA estuda agora, em função do “sucesso” do Catar, em cima de um Mundial de clubes completamente insano.
Indiferente aos avisos de sábios como Joachim Löw, para quem os “jogadores já atingiram os limites físico e mental”, e à oposição formal da Associação Europeia de Clubes, que considera inaceitável o actual calendário - Mundial é quando, como e onde Infantino quiser."
Schmidt vai arrumar a casa | SL Benfica
"Técnico alemão já deverá saber com quem não vai contar para a segunda parte da época e prepara “limpeza”.
O mercado de Inverno está aí à porta, com o habitual frenesim de entradas e saídas de jogadores. Afinam-se os motores das equipas, dão-se uns retoques aqui e ali, para que no começo do novo ano estejam melhor apetrechadas para conseguirem os seus objetivos. Na Luz, o SL Benfica prepara a afinação de um motor que esta temporada tem estado imparável e que quer continuar em altas rotações.
Perspectivam-se novas contratações para dar equilíbrio à equipa mas, acima de tudo, que venham acrescentar qualidade para atacar todas as frentes em que o SL Benfica está envolvido. Mas se uns entram, outros vão ter que rumar a outras paragens e Roger Schmidt já afirmou que vai haver alterações no plantel.
Comecemos então pela baliza. O nome de Helton Leite tem sido falado com uma das possíveis saídas já em Janeiro. O guarda-redes brasileiro não tem sido aposta do treinador germânico e já terá manifestado interesse em sair para um clube onde possa jogar com mais regularidade. A Taça de Portugal e a Taça da Liga eram as competições onde o número 77 das águias esperaria somar minutos, mas até ao momento conta apenas com uma presença a titular, no encontro da prova rainha do futebol português, frente ao Caldas SC.
Na defesa, existe a possibilidade de haver mais que uma saída. John Brooks, central norte-americano que o SL Benfica contratou em Setembro para colmatar a lesão de Morato e a saída de Vertonghen, poderá abandonar a Luz nas próximas semanas. O defesa de 29 anos, que estaria com esperanças de ser aposta regular de Roger Schmidt, não correspondeu às expectativas, mas também não contava com a ascensão meteórica de António Silva, que entrou no onze encarnado e de lá nunca mais saiu. No eixo defensivo existem ainda Otamendi, titular indiscutível, João Victor e Lucas Veríssimo, já totalmente recuperado da grave lesão que contraiu o ano passado.
Em relação às laterais, Gil Dias e André Almeida podem também ter guia de marcha. O primeiro conta apenas com 11 minutos esta temporada, e a contratação de Ristic para o lado esquerdo da defesa, veio complicar ainda mais vida ao português, que pode também atuar como extremo esquerdo. No lado contrário, André Almeida, que já faz parte da mobília da casa, poderá ter os dias contados de águia ao peito, ele que está no SL Benfica desde 2012.
Já no que diz respeito ao meio-campo, este será o sector onde à partida não deverá sair ninguém. O único que poderá deixar o ninho da águia será Paulo Bernardo, e por empréstimo, já que os responsáveis encarnados vêm neste médio de apenas 20 anos, potencial para evoluir noutro clube, à semelhança do que aconteceu com Florentino.
Finalmente, o ataque das águias poderá também ser alvo de dispensas. A possível contratação de um avançado com créditos firmados vai fazer com que alguns jogadores da frente percam definitivamente o seu espaço. Rodrigo Pinho é aquele que está mais perto da porta de saída. O avançado brasileiro nunca conseguiu agarrar o lugar e conta com poucos minutos esta época, pelo que deverá abandonar a formação encarnada no início do ano. Diogo Gonçalves, extremo direito de 25 anos, tarda em “explodir” e o seu adeus à Luz é um cenário provável. Apontou apenas um golo nos 19 jogos em que participou esta época e as suas exibições estão aquém das expetativas.
Rui Costa, presidente do SL Benfica, afirmou há dias que não vai vender os seus jogadores mais influentes, a não ser que seja pela cláusula de rescisão. No entanto, admitiu que vai fazer ajustes no plantel, e isso passa por vender alguns excedentários nesta janela de transferências que se aproxima. Resta saber se os jogadores aqui mencionados irão resistir ao frio do Inverno, leia-se, permanecer no plantel encarnado, ou se vão partir para uma nova aventura fora da Luz."
Nas últimas épocas há relatos de centenas de agressões a árbitros. Quem bate de forma violenta tem que ser violentamente castigado
"Se até eu estou cansado de falar e escrever sobre agressões a árbitros, imagino o caro leitor que, de vez em quando, lá tem que levar com uma série de vídeos a mostrar aquilo que nunca devia acontecer no desporto.
Em minha defesa, uma garantia: sou apenas um dos muitos mensageiros, não a mensagem. Importa não confundir quem condena e expõe, de quem bate e magoa.
Esta questão, eterna por cá mas também comum lá fora, parece não ter solução à vista, mas, na verdade... tem. E é bom que tenhamos consciência que este fenómeno pode ser controlado, diminuído e, quem sabe até, erradicado.
Como qualquer desafio difícil, é preciso começar ontem. É preciso pensar, planear e agir, com firmeza e consistência, ainda que isso implique navegar em águas turvas, repletas de burocracias e anticorpos.
Por muito que as estatísticas tentem relativizar a frequência com que acontecem, as agressões a agentes desportivos são sempre graves, são sempre condenáveis. Uma, dez, cem, que importa?
Bater deliberadamente em alguém, fazê-lo de forma inesperada, covarde e agressiva, é a antítese de tudo o que se espera numa atividade capaz de criar momentos fantásticos.
O desporto é nobreza. Apela ao melhor de cada um e ao melhor de todos. No desporto formam-se jovens, dando-lhes ferramentas para crescerem e serem os adultos de amanhã. É ali que aprendem a conviver, a socializar e a trabalhar em equipa. É ali que aprendem a vencer e a perder, a competir e a ser altruístas, educados e respeitosos. É ali que aprendem a ser responsáveis e líderes. É ali que treinam o corpo, a mente e a alma, tornando-se mais saudáveis e independentes. Mais aptos.
Cabe a todos nós, mas em particular às estruturas com poder, a desafiante missão de resgatar o que há de melhor nessa atividade.
Cabe-lhes a obrigação formal e moral de criarem medidas que garantam que quem compete se sinta feliz e seguro. Acima de tudo, seguro.
Quando isso não acontece, falham todos.
Falha o adepto que perde a cabeça e agride o atleta ou o treinador. Falha o jogador que sucumbe à pressão e atinge o árbitro a soco ou a pontapé. Mas falham sobretudo aqueles que, podendo e devendo, não tiveram capacidade de evitar que isso acontecesse.
Nas últimas épocas há relatos de centenas de agressões a árbitros. Centenas.
Muitas levaram jovens às Urgências, às enfermarias e a consultórios de psiquiatria. Muitos tiveram que ser suturados. Muitos foram sujeitos a intervenções cirúrgicas. Vários ficaram marcados para sempre, no corpo e na mente. A maioria abandonou a carreira. Quem pode censurá-los?
Meus amigos, isto não é normal. Não no meu país, que por vezes parece incentivar e permitir tudo isto.
Incentiva através de alguns exemplos vindos de palcos maiores que deviam ser referência oposta. Permite pela sensação de impunidade que continua a passar para o exterior.
Quem bate de forma violenta tem que ser violentamente castigado. Nada contra o homem ou contra a pessoa que tem um gesto para esquecer. Tudo contra o autor material de um momento tresloucado. Esse tem que ser responsabilizado e punido exemplarmente pela justiça desportiva e civil.
Quando a sensibilização e a prevenção não funcionam, a sanção pesada é a única forma de dissuadir atos destes.
A pergunta que se impõe é muito simples:
- Perante as sete agressões do passado fim de semana (um dos agredidos tinha 15 anos, outro 17) e tantas outras antes dessas, quando é que federações, associações de futebol, ligas, sindicatos e poder político vão reunir-se para propor implementação efetiva de medidas mais restritivas?
Que mais tem que acontecer para vermos avanços nessa área? É preciso que um árbitro fique desfigurado? É preciso que perca a vida?
Temos uma oportunidade de ouro de fazer algo que raramente fazemos por cá: andar à frente do problema. Antecipá-lo. Preveni-lo. Resolvê-lo.
Coragem, independência e atitude.
Atuem já, por favor."
Catarses 3️⃣2️⃣ Uma tragédia à grega
"O fim de Fernando Santos, o nosso “el Greco”, à frente da seleção portuguesa, é o epílogo de uma tragédia de final anunciado, um borrão para quem a maior dificuldade da arte foi sempre atingir a perfeita harmonia plástica através da paleta futebolística à sua disposição.
E talvez o leve de volta ao Partenon e ao encontro dos “parakaló” calorosos de quem mais gostou dele, a Grécia, tão mais grata e influente na sua vida de treinador de futebol.
Enquanto esperamos pelas explicações e justificações dos outros protagonistas desta história - sobretudo Cristiano Ronaldo e Fernando Gomes, bem menos assertivos do que o achista Marcelo Rebelo de Sousa, que o comentou em direto nas televisões 32 minutos antes do anúncio formal da Federação -, situemos a ação dramática nessa pátria da filosofia e da compreensão humana.
E cada um dos “hipokrytes” (intérpretes) nos perfis dos três pais da tragédia grega - que foi o primeiro grande espectáculo de massas, para mais de 15 mil pessoas, no anfiteatro de Dionisio, o estádio panatenaico do teatro.
Fernando Santos podia ser um Ésquilo, encenador do enredo, muito estrito na sua crença e estética teológica, em obediência à moral do destino e à ortodoxia do trabalho: “Deus ajuda aqueles que se esforçam”.
Em Cristiano Ronaldo vejo um Sófocles, artista ufano de dezenas de vitórias nos campeonatos dramáticos, introduzindo a influência do “coro” como pressão externa para sublinhar o conflito em palco, sempre à procura de roubar o protagonismo, no limiar dos caprichos divinais: “nenhum inimigo é pior do que um mau conselho”.
E, finalmente, um Fernando Gomes como Euripides, privilegiando o realismo e desconsiderando a irracionalidade dos deuses, tendo introduzido em palco a bombástica “deus ex-machina” para detonar a explosão final perante o impasse da história: “questiona tudo, entende o principal e nada respondas”.
Três frentes de uma guerra surda, que escondem motivações e estratégias, atrás de declarações formais e estereotipadas, com menos respeito pelos espectadores, de acordo com outro axioma de Ésquilo segundo o qual “na guerra, a primeira vítima é a verdade”.
Foi do pensamento de qualquer um destes dramaturgos originais, que retiramos orientações à medida das equipas de futebol conquistadoras, organizadas e determinadas, tão básicos princípios como “a felicidade exige esforço” ou “a obediência é a mãe do sucesso”.
As tragédias gregas também se compunham de três partes distintas como a vida de uma equipa de futebol, acabando invariavelmente na desgraça ou na redenção dos protagonistas:
Prólogo: a fase de conhecimento e apresentação em que se desenham os objetivos;
Episódios: os jogos e peripécias dos protagonistas que incluem os comentários, as interpretações e as interpelações dos jornalistas (coro);
Êxodo: o final dramático e marcante em que o herói recebe a sentença divina.
Uma seleção nacional de futebol emula as famílias nobres em que se desenrolavam as tragédias que apaixonavam os gregos. Formadas por seres humanos que, pela sua posição social e actividade profissional, se colocam em pedestais e palcos de enorme exposição à crítica, nem sempre pelas melhores razões.
Uma grande parte dos enredos dramáticos eram atenuados por finais cómicos ou, pelo menos, surpreendentes do ponto de vista cénico para atenuarem a carga dramática da trama que, normalmente, mexia com a justiça e a coerência dos deuses. Desfechos de reconciliação ou de castigo, mas definitivos para a vítima, perante a necessidade de mexer em alguma coisa para que, certamente, tudo fique na mesma.
E agora, como diria Fernando Santos, no seu grego moderno: “Antío kai efcharistó”
Adeus e obrigado."
Saltillo II
"O resultado da falta de liderança na FPF saltou à vista de todos durante este Campeonato do Mundo.
Um DESASTRE, foi pelo que se saldou a participação de Portugal no Catar.
Consequências para Fernando Gomes: Nenhumas até ao momento.
Explicações ao povo português: Nenhumas até ao momento.
Basta! Basta desta pouca vergonha! Basta de uma FPF ser gerida ao sabor e vontades de um jogador!
Queremos mudanças na Federação Portuguesa de Futebol."
Lionel Messi: vi jogar
"É uma das minhas histórias preferidas do Mundial e nem sequer aconteceu (ou vai acontecendo) em Doha. Então é assim: quando se transferiu para o Boca Juniors e viu a plata a entrar-lhe bolsos adentro, Diego Maradona tirou os pais da vida insalubre que levavam na Villa Fiorito, bairro de má fama nos arrabaldes de Buenos Aires, e comprou uma casa em Villa Devoto, onde Don Diego, o pai, e Doña Tota, a mãe, se permitiram finalmente a um dia a dia de classe média.
A casa, número 4575 da calle José Luis Cantilo, caso o caro leitor queira lá dar uma passada, ficou na família até à morte do Barrilete Cósmico, em 2020, e acabou comprada por três irmãos. Não se sabe quem são, mas eles sabem que a sua propriedade faz parte de um legado comum de amor por Diego, o mais malabarista dos futebolistas. E quando assim é, torna-se obrigatório abrir portas, partilhar.
Durante este Mundial, a casa tem estado de portas escancaradas a quem quer entrar para ver os jogos da Argentina. Fazem-se festas alvicelestes. Não se perguntam nomes, quem são as pessoas, se conhecem os donos: entra-se e pronto. E ontem à noite não pude deixar de pensar como ali se terá vivido aquele slalom messiânico ao minuto 69, quando Lionel, a encarnação em campo mais perfeita de Diego, arrancou por ali fora, com a bola num beijo interminável com a bota, pela direita como Maradona em 86, e driblou uma, duas, três vezes o melhor central deste Mundial, Josko Gvardiol, que aos 20 anos terá percebido ali que a diferença entre o céu e o inferno pode ser um génio de um metro e sessenta e nove a dançar à nossa frente.
Aos 35 anos, Messi continua a guardar as forças que lhe restam para três ou quatro momentos celestiais e neste Mundial tem pintalgado os jogos da Argentina com esse pó estelar de que são feitos os sonhos. Isso chega para nos maravilhar, passados todos estes anos. No domingo, jogará a sua segunda final de um Mundial e nunca esteve tão perto de se desamarrar das comparações a Diego. Mas, aconteça o que acontecer, abata-se ou não sobre ele o fantasma da derradeira oportunidade perdida, um dia vamos todos poder dizer, Lionel Messi: vi jogar.
Hoje, à noitinha, Messi saberá quem terá pela frente na final de domingo, França ou Marrocos. Um duelo com Mbappé elevaria o estatuto do jogo a acontecimento essencial para o presente e futuro do futebol, um desses alinhamentos cósmicos que marcam a história das coisas. Seria forte, muito forte."
O meu nome é Luka
"Aveludado nos pés, totémico no quão representativo é na Croácia, a história de Luka Modrić, um futebolista indescritivelmente talentoso pelas tropelias com que doma uma bola, fá-lo ser um paradoxo. Também uma improbabilidade. Teve uma infância montanhosa, em criança perdia-se na contagem de tempo com o avô em Zaton Obrovacki, aldeia onde o pai do seu pai cuidava de ovelhas, cabras e galinhas, caçando nos tempos livres. Há fotografias de Luka ainda gente de palmo e meio, no meio da neve, agarrado a uma espingarda maior do que ele, ao lado do avô, de boina e casaco de caçador, ambos rodeados por neve.
Não muito longe dali, o sexagenário com quem partilha o nome foi morto por forças sérvias, varrido por uma ronda de metralhadora a poucas centenas de metros da porta de casa. Luka recorda-se do avô deitado num caixão aberto, de o pai lhe dizer para o beijar e fugir com a família para Zadar, junto ao mar, onde se diz que Ernest Hemingway viu o mais bonito fechar de persiana do sol. E Luka lembra-se do Hotel Kolovare, o improvisado centro de refugiados na cidade, onde jogava à bola no parque de estacionamento e a agarrava mal soassem as sirenes a urgir as pessoas a acudirem aos abrigos subterrâneos. “Aqueles assobios terríveis seguidos de uma explosão” também lhe estão na memória, quando o pai já tinha sido chamado a combater na Guerra da Independência da Croácia (1991-95).
Depois há as fotos de Modrić com uma bola de gomos brancos e pretos, das clássicas, com idade de ainda nem sequer dominar a fala. Dele fardado à militar, abraçado ao pai e ao tio quando cumpriu o serviço obrigatório. E hoje há as imagens das sobras, captadas por quem visita o país em paz e vai à aldeia onde Luka cresceu para fotografar a casa do avô em ruínas, com crateras de artilharia e e engolida por vegetação, ladeada por um sinal de “não se aproximem” devido ao perigo de minas. As pessoas lá acorrem, curiosas, julgando presenciar o lugar onde o pequeno dínamo de inspiração viveu, mas não, ele ali sobreviveu, dali ele escapou. Viver seria apenas mais tarde.
Pulando no tempo, a história do capitão da Croácia é como a de incontáveis outros croatas. Nascido em 1985, nunca chegou a pegar em armas, mas lutou contra a história que forjou um país e, diretamente, várias gerações. O Luka Modrić que ainda perdura com o seu ondulado e loiro cabelo, riscado ao meio desde sempre, veio da brutalidade da guerra e tantos anos depois ainda não mostrou aos três filhos a casa do avô, a essa tríade de descendência que saltou para o campo a abraçá-lo quando ele prevaleceu, uma vez mais e diante do Brasil, com a seleção que parece resistir mais do que joga.
Os croatas são paradoxais como Luka. Vêm de um país nem com quatro milhões de pessoas, pequeno em tamanho e em gente, embora repetente na proeza futebolística de estar, pelo segundo Mundial seguido, nas meias-finais, a tentar replicar a presença na final conseguida há quatro anos. Na Rússia, ultrapassaram dois prolongamentos com penáltis à sobremesa, no Catar já imitaram esse filme contra japoneses e brasileiros. Lá estavam os 37 anos de Modrić, dono de um dos QI’s futebolísticos mais avançados e proprietário dos necessários pés aveludados para o evidenciarem com uma bola, a batalhar e a lutar, a enganar-nos mais um pouco, fazendo crer que é possível passar a perna ao tempo.
Ele e o Lionel Messi, com os seus 35, colidem hoje na primeira meia-final do Mundial que será um forçado render da genialidade para alguém. O berço do argentino nem se aproxima de balas, armas ou disparos, o esqueleto da sua história é feito de anonimato, hormonas de crescimento e um crónico tímido em quem a família apostou o futuro do outro lado do Atlântico, longe das agruras de um rapaz croata que aos 10 anos, na escola, versou sobre granadas e a morte do avô quando o professor pediu aos alunos que escrevessem uma história. “Apesar de ainda ser muito pequeno, já vivi muito medo na minha vida”, redigiu no papel, como contou, há anos, ao “The Guardian”.
Luka Modrić já era vice-campeão mundial e vencedor da Bola de Ouro de 2018. Hoje ainda é o predominante médio ić a suster a resistência croata, à sua volta gravitam Brozović e Kovacić e atrás está Joško Gvardiol, prodígio defensivo que corta tudo o que o trio no miolo deixa passar. Terão de lidar com o derradeiro obstáculo para o reencontro com a proeza, a Argentina é uma seleção a urgir-se na superação em prol do derradeiro tango da sua lenda, mas o tanto que merecidamente dedicamos a louvar Messi tem roubado louros a Luka, um futebolista incrível, um tenor a cantar com os pés no meio de tantos batuques de percussão que vão resistindo a tudo.
Zvonimir Boban, o primeiro capitão da Croácia que alcançou as ‘meias em 1998, confessou ao “New York Times” não saber “como chegou à cultura” croata o facto de o povo sempre achar que são melhores do que qualquer outra seleção, seja qual for. A explicação pode estar em tantos terem sobrevivido a uma guerra e hoje quase todos viverem com memórias dela."
No Qatar, como um avô
"“No meu tempo, não era assim”, dizem os experientes saudosistas, desdenhando os mais jovens que vêem o mundo de forma diferente. Quando o tom é condescendente, nunca é bom ouvir isso.
Mas este Mundial 2022 colocou-me, ainda antes dos 30 anos, a ser o condescendente e até paternalista velho do Restelo que não compreende que raio faz a juventude. E que raio faz a juventude?
Estávamos com 12 minutos de Brasil-Coreia do Sul. Neymar ia bater um penálti. No Brasil, loucura à frente dos televisores por parte de quem adoraria estar no estádio 974. No Qatar, na bancada central, alguns sortudos assistem ao momento... no ecrã.
Dias depois, estávamos com 34 minutos de Argentina-Croácia. Messi ia bater um penálti. Na Argentina, loucura à frente dos televisores por parte de quem adoraria estar no estádio Lusail. No Qatar, na bancada central, alguns sortudos assistem ao momento... no ecrã.
Porquê? Não sei. Mas fazem-me sentir avô.
No caso do jogo do Brasil, eu nem me tinha apercebido do fenómeno. “Olha para estes gajos a verem o penálti do telemóvel”, apontou-me um colega jornalista.
No jogo da Argentina, eu já estava de olho na bizarria. Enquanto Messi se preparava para bater, cheguei a fotografar os gaiatos – não há palavra mais "avô" do que esta –, mas apaguei a fotografia quando limpava a galeria ontem à noite – lá está, como um bom avô.
Para estes jovens, poderem oferecer o penálti aos seus seguidores das redes sociais ou gravarem o momento para verem mais tarde era mais excitante do que terem os olhos em Neymar e Messi, para apreciarem o momento.
Faz sentido? Talvez faça, não sei bem. Mas já tenho maior dificuldade em aceitar os dois que vi a seguirem o penálti na transmissão que passava nos respectivos telemóveis. Não estavam sequer a filmar, estavam a ver o jogo no telemóvel. Ninguém me contou, vi eu.
No meu tempo, não era assim. Palavra de avô."