"Uma tarde impressionante no Campo Grande deu ao Benfica uma das vitórias mais gordas sobre o Sporting: 7-2. Com a curiosidade de todos os nove golos terem sido marcados no espaço de 39 minutos. Vertiginoso!
Muito se recorda aquele abracadabrante 7-1 aplicado pelo Sporting ao Benfica em Alvalade. Que teve a curiosidade de ter sido a única derrota aos encarnados nesse campeonato que viriam a conquistar.
Muito se recorda, igualmente, o 6-3 que viria a ser uma espécie de vingança e que atirou João Pinto para os pináculos das montanhas do Pamir.
Mas pouco se fala do 7-2.
Foi no dia 28 de Abril de 1946. À 18.ª jornada do Campeonato Nacional. Pouco se fala, e eu, se me dão licença, vou falar hoje. Para que não caia definitivamente num daqueles injustos poços fundos do olvido.
Nuvens escuras sobre o Campo Grande: talvez um presságio. Mas não choveu. As pessoas amontoaram-se nas bancadas. Algumas traziam merenda. Era prática na altura. De repente vinha uma daquelas fomes e a bucha estava ali a calhar.
A avançada do Benfica era do quilé, como gostava de dizer o meu bom amigo Fernando Assis Pacheco: Mário Rui, Arsénio, Julinho, Teixeira e Rogério Pipi.
Mas havia, do outro lado, gente do calibre de Azevedo, o guarda-redes acrobata, Manuel Marques, Veríssimo e Barrosa, e os violinos Jesus Correia, Albano e Peyroteo.
Ah! Como a coisa prometia!
Prometia e cumpriu.
Porque logo desde o pontapé inicial ambos os contendores se lançaram ao assalto da baliza um do outro. Aos dois minutos, tanto Azevedo como Martins já se tinham esmerado em defesas capazes de elevar o entusiasmo do público.
Num instante, o Campo Grande estava mergulhado num dos jogos mais emocionantes da história dos dois rivais figadais.
Arsénio, Julinho e Mário Rui protagonizaram remates de abrir bocas de espanto. Mas o enorme Peyroteo não lhes ficava atrás. Era um avançado impressionante de força.
Albano chuta à trave, Lourenço magoa-se e tem de sair de campo durante alguns momentos, já estamos sobre o minuto quarenta e nada de golos.
Quem diria? O intervalo chega com 0-0.
O povo que enchia o Campo Grande desembrulhava as merendas sem imaginar sequer o que estaria para vir.
A tempestade!
Tempestade, sim, mas de golos. Nove - nove golos em 45 minutos! Ou melhor: 39.
Ainda não estava decorrida a totalidade do primeiro e já Arsénio encontrara o caminho para desfazer o 0-0. Um entusiasmo tomou conta dos espectadores.
Sete minutos do segundo tempo: combinação vistosa entre Arsénio e Mário Rui - 2-0. O Sporting acusa o golpe. Peyroteo bate-se como o leão que era, mas não consegue visar a baliza de Martins.
O Benfica está imparável: Rogério tem uma corrida impressionante, passa por dois adversários no seu estilo ladino de rapaz num campo de madressilvas, e engana Azevedo - 3-0.
O delírio, e total! Poucos duvidam da vitória dos encarnados.
Um dos que teimam em duvidar é Albano, jogador finíssimo. Insiste em dribles na área benfiquista, ganha um ressalto e reduz para 1-3. Estavam decorridos 67 minutos e havia muito tempo para tentar a recuperação. logo em seguida, Peyroteo falha um movimento nada comum nele.
Rogério repete l lance que lhe dera o golo. E esse lance termina como o seu irmão gémeo: com a bola no fundo da baliza de Azevedo. Quatro-a-um.
Estamos quase sobre os quinze minutos derradeiros. Agora, sim, ninguém porá a vitória do Benfica em causa. Até porque Mário Rui alça da perna e desfere um pontapé estupendo de colocação: 5-1.
É fácil adivinhar o regozijo nas bancadas. Até pães com chouriço voavam pelo ar.
O Sporting cai a pique. Arsénio rasga a defesa verde-e-branca na diagonal e marca o sexto golo. Azevedo não estava habituado a ter de ir buscar tantas bolas. Não fazia o seu género. Mas está impotente perante a voracidade do ataque das águias. Chega a ser assustador.
Mário Rui faz o sétimo:faltam nove minutos para o apito derradeiro do árbitro Domingos Miranda, que viera do Porto.
Peyroteo ergue-se no meio dos destroços da sua equipa. Ainda tem um rasgo de energia para lutar contra a derrocada total. Fogoso, vibrante, aplica uma cabeçada fortíssima numa bola centrada por Jesus Correia e bate Martins pela segunda vez.
Os últimos cinco minutos pura e simplesmente não existem
Os jogadores do Benfica estão saciados; os jogadores do Sporting estão resignados.
A multidão abandona o estádio em euforia. Muitos com fome por terem utilizado a merendas como chapéu nas touradas. Enfim, valera bem o sacrifício."
Afonso de Melo, in O Benfica