sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Batoteiro não entra


"Havia um miúdo lá no bairro dos meus avós que fazia sempre a mesma coisa quando nos via a jogar à bola nas traseiras dos prédios. Se as equipas já estivessem formadas (e ele tivesse de ficar de fora), não descansava enquanto não metesse o bedelho. Se a bola saísse, ia buscá.la e levava demasiado tempo a devolvê-la; pelo contrário, se a bola fosse parar ao quintal de um vizinho maldisposto, era o primeiro a fugir.
Numa dessas tardes de correrias, remates e imaginação à solta, o miúdo estava de fora e 'esticou-se' em demasia. O contra-ataque estava lançado, a bola aproximou-se da lateral, e ele revolveu dar uma ajudinha para que a redondinha não saísse das linhas marcadas à força da sola dos sapatos. Foi o bom e o bonito... Nem os jogadores da equipa beneficiada nem os jogadores da equipa prejudicada aceitaram aquele interferência. Fazia parte do código da rua, quem está de fora não racha lenha, e, acima de tudo, não havia espaço para batoteiros. Fosse no futebol de rua, no berlinde, nas escondidas ou na apanhada, havia limites para aldrabice. E se fosse a jogar às cartas, então aí a coisa azedava. Descoberta uma renúncia na sueca ou no keips, o caldo entornava.
Quando éramos miúdos, aquilo revestia-se de gravidade momentânea. Era um caso no bairro, uma falta de carácter. Claro que tudo se resolvia com uma série de encontrões e insultos, mas  não passava disso. O infrator aprendia a lição e não voltava a repita-la.
Imaginem se fôssemos um profissional de futsal, com agressão a árbitro no currículo, suspensões e outros comportamentos duvidosos, e entrássemos em campo, sem estar a jogar, para cortar uma jogada de ataque do adversário a menos de dois minutos do fim. No bairro dos meus avós, isso seria uma vergonha para carregar ao longo da vida. Noutros bairros, como vimos na semana passada, é uma forma de estar no desporto, por muito que se diga o contrário.
Agora que penso nisso, acho que me lembro de que clube era o miúdo."

Ricardo Santos, in O Benfica

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