quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Relatos duma civilização avançada


"Basta assistir a um fim de semana futebolístico como este que passou e perceber como os erros absurdos se vão sucedendo

Não sei se é dos dias passados a acompanhar jogos de uma modalidade de primeiro mundo, como demonstrado mais uma vez pelo râguebi no mundial disputado em França, ou se a explicação reside na dimensão cataclísmica dos casos bizarros relacionados com a ação (ou inação) do VAR em jogos de futebol realizados em Portugal e lá fora. Talvez seja um pouco de ambas.
Sei que o râguebi sairá deste mundial como um exemplo ainda mais inspirador de civilidade, desportivismo e espírito patriótico. E sai também de credibilidade reforçada pelo modo como utiliza o VAR. É espantoso ver como tudo é feito com rigor, mas acima de tudo com a mais absoluta naturalidade, às claras, como se não houvesse outra forma conceptível de se fazer as coisas, da discussão construtiva entre árbitros de campo e VAR à explicação pedagógica que será acatada por todos, incluindo os que concordam em discordar da decisão.
Depois de tantos anos a ver futebol, incluindo uma meia dúzia desse anos a constatar que o uso de tecnologia no futebol serve muitas vezes para somar opacidade à dúvida reinante, é curioso, quase extraordinário, observar como os protagonistas de um encontro de râguebi, no meio de tanta agressividade e choque físico, aparentam ser espécimes de uma civilização mais avançada.
Estes extraterrestres a viver entre nós, munidos de uma improvável força motriz chamada vontade, decidiram que isto era tudo muito mais simples do que parece, desde que todos concordemos que no desporto deve ganhar o melhor e não o mais matreiro, que o melhor nem sempre vence mas que isso não equivale a perder a dignidade na derrota, que ganhar não concede ao vencedor uma autorização moral para humilhar os derrotados, e que uma derrota, por muito difícil de engolir que possa ser, não implica a rejeição violenta do vencedor ou do resultado final, e que o desporto deve ser o resultado depurado da ação dos atletas dentro de campo.
Para que esta revolução de civismo e cultura desportiva aconteça, é necessário que exista gente suficiente, no relvado e fora dele, convencida do mais elementar bom senso contido nestas regras de relação entre seres humanos numa arena desportiva. Talvez por isso a utilização do VAR pareça uma banalidade, mera aplicação das regras, isto para quem já viu alguns jogos de râguebi, se fascinou com a dinâmica do VAR, e depois percebeu que era apenas um parêntesis do jogo.
No extremo oposto encontramos ideias como a estreia de um programa de televisão semanal, construído para as audiências e não para os adeptos, em que uma seleção, feita sabe-se lá por quem, de umas quantas comunicações entre árbitro e VAR, nos mostra com exatidão o quanto o futebol precisará de caminhar para aspirar a níveis de honestidade minimamente próximos do râguebi. No futebol, a força motriz parece ser outra e ninguém se lembrará de uma ocasião em que a maioria dos responsáveis tenham parecido efetivamente convencidos da urgência das mudanças. Há sempre umas campanhas de fair -play e combate a um problema qualquer bastante óbvio que teimará em não desaparecer, viabilizando desde logo a campanha do ano seguinte. Uma pessoa parece presa naquele filme com o Bill Murray em que ele acorda sempre no mesmo dia. Só não parece haver tempo nesta repetição da história para tornar o jogo um pouco melhor.
Constatada a apatia ou cedência a outros desígnios mais importantes, chegamos a outubro de 2023 e até as ligas que serviam de exemplo se tornam exemplo da desorientação e incapacidade de proteger a tão propalada verdade desportiva. Como explica o comunicado do Liverpool há um par de dias, em reação a um erro monumental do VAR que tirou 2 pontos a um candidato ao título, a integridade do desporto foi colocada em causa. O comunicado esclarece que, apesar de se compreender a pressão a que estes agentes do jogo se encontram sujeitos durante uma partida, é fundamental que as decisões sejam tomadas com tempo, clareza de critérios e absoluta transparência. O comunicado explica tudo isto através de uma linguagem desprovida de teorias de conspiração ou dos maniqueísmos de um futebol como o português e no final admite recorrer a outras instâncias para assegurar a justiça de que o clube foi privado este fim de semana.
Este não é o primeiro comunicado da associação de árbitros ingleses, e tudo indica que não será o último. Por cá, houve uma tentativa de abrir igual precedente mas cedo se percebeu que essa prática não seria sustentável, sob pena de ser necessário ao Conselho de Arbitragem da FPF contratar uma nova equipa de comunicação que conseguisse produzir comunicados à velocidade a que os erros são cometidos.
Não é preciso muito para se chegar a esta conclusão. Basta assistir a um fim de semana futebolístico como este que passou, e perceber como os erros absurdos se vão sucedendo e colocando em causa a integridade das competições. Vagarosamente, vamos concluindo aos poucos que o futebol com VAR não é, afinal, assim tão diferente de do um futebol sem VAR, e que talvez passássemos todos melhor sem esta persistente ambição de estabelecer a verdade desportiva quando as mentiras estão em toda a parte.
À medida que os erros se sucedem, talvez inspirado pelo tempo de teorias de conspiração a metro em que vivemos, dou por mim a pensar se tudo não será uma uma conspiração genialmente pensada e executada por terroristas românticos que conseguiram integrar-se em equipas de arbitragem, com a finalidade de convencer o mundo da inutilidade do VAR. Seria uma história mais bonita. Aí chegados, seria tempo de admitirmos que a experiência não tinha corrido bem. Juntos, voltaríamos ao mundo como era antes, sem tantos julgamentos nem arrependimentos, e com a profunda convicção de que a verdade deste jogo está nos olhos de quem a vê. Isto ou aprender de uma vez por todas com civilizações mais avançadas, mostrando que se quer efetivamente respeitar um pouco mais a modalidade, os clubes e os adeptos."

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