terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Fez da genialidade uma banalidade


"Esta final não mais nos sairá da cabeça, contaremos a filhos e netos sobre o dia em que sucesso definitivo e fracasso inapagável conviveram como nunca num jogo desta importância, minuto a minuto, defesa após remate e às vezes vice-versa, como no lance louco que Dibu Martínez salvou e Lautaro a seguir desperdiçou, quando já se anunciava que a sorte ia andar à roda dos penaltis. De mais penaltis.
Quase três horas com passado e futuro no fio da navalha, potência e sabedoria, Mbappé e Messi. De repente eram eles os dois, só os dois, como se um lance definisse ou resumisse uma carreira. Maior risco de Messi, na prova eloquentíssima de que o tempo é cruel. Era agora ou nunca. Para Mbappé já tinha sido e haveria mais, nunca seria nunca.
Messi seria Messi, independentemente de quem levantasse a taça no fim, de marcar ou não, de brilhar mais ou menos, afinal tinha dado ao mundo quase 20 anos de golos, dribles, passes, livres, no repertório genial mais amplo e diversificado que recordo. Messi seria sempre Messi… ou não. Pensei aquando do primeiro penalti: marca e apenas cumpriu o óbvio, falha e levará para a aposentadoria a marca do falhanço na hora mais dramática.
Não vacilou, nem ele nem Mbappé - este por duas vezes - e no desempate outra vez, os deuses da relva desafiavam a felicidade e a eternidade. Nenhum merecia falhar, nenhum falhou. E houve prémio para os dois, o que também foi justo. Como numa passagem de testemunho, com o mundo a observar de unhas roídas, o argentino poderia ter dito ao furacão com quem treina todos os dias em Paris: toma lá conta disto para o futuro, o Mundial já não me terá a mim, vai precisar de ti. Para Messi este era o tempo. E foi. E viver no tempo dele é uma felicidade.
O argentino deixou de ter inibições de resultados ou barreiras psicológicas e completou a caderneta de títulos com o cromo mais raro. Este será o Mundial de Messi como o de 86 foi de Maradona. É que a Argentina não ganhou este Mundial com Messi, só ganhou porque tinha Messi. É certo que com vários craques a crescerem em redor do ídolo que idolatraram, mas guiados por ele.
Aos 35 anos carregou a equipa com o ar tímido de quem sempre parece deslocado como centro das atenções, quase envergonhado por juntarem o nome dele ao de Maradona na canção que eternizará 2022: “En Argentina nascí, tierra de Diego e Lionel…”.
Messi é, a par, genialidade e regularidade como ninguém antes. São quase vinte anos a fazer tudo o que é certo e a fazê-lo sempre. No Catar voltou a fazer tudo bem, em cada jogo, dentro do que a idade autoriza e a sabedoria aconselha: driblou quando se impunha, travou se era recomendado, pressentiu espaços invisíveis, resolveu a um-dois toques cada equação mais exigente.
E marcou com alma o golo que mudou o destino frente ao México, desmarcou Molina desprezando a visão como sentido essencial, afrontou Gvardiol como um garoto feliz no recreio da escola. Pode sempre exigir-se mais, quase ignorando o número absurdo de vezes em qua faz o que mais ninguém consegue.
É esse o problema de Messi, nele a simples excelência já parece curta. Habituou-nos à perfeição. Fez da genialidade uma banalidade. E bem merecia um final assim. E uma final."

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