quinta-feira, 1 de julho de 2021

Com uma mosca dentro da cabeça


"Nimzowitch aproximou-se de Lasker e mostrou-lhe o seu novo cartão de visita. Dizia: ‘Crown Prince of the Chess World’.

Aron, sorridente, entregou um cartão de visita ao seu amigo Emanuel Lasker e ficou atento à sua reação. Lasker estava habituado às brincadeiras de Aron, mas esta ultrapassava verdadeiramente os limites. No cartão, em inglês, estava escrito: Crown Prince of the Chess World. Nitidamente um abuso. Porque o xadrez não tinha uma organização monárquica, com príncipes coroados a sucederem a príncipes coroados, mas também porque Aron Nimzowitsch não tinha estatuto para preencher um requisito daqueles. A verdade é que não havia nada a fazer. Nascido em Riga, na altura parte do Império Russo, Aron era um rapaz educado e com os bolsos cheios de dinheiro. O pai dera-lhe lições de xadrez e preparou-o para o negócio de madeira que a família dominava. Nimzowitsch filho nunca quis saber nem de negócios nem de madeira. A menos que a madeira fosse a base do jogo das 64 casas. Em 1904 estava em Berlim, a estudar filosofia e a exercer a profissão de xadrezista, inscrevendo-se em todos os grandes torneios que tivessem um prémio monetário que lhe interessasse, tal como aconteceu em Munique, em 1906. Seis anos mais tarde já tinha atingido nível suficiente para se bater com Alekhine, no Campeonato dos Grandes Mestres Russos. Mas nunca conseguiu atingir o título de campeão do mundo de xadrez.
Lasker, que esse, sim, foi campeão do mundo entre 1894 e 1920, preocupava-se com o excesso de farronca do seu amigo. Aron ter-lhe-á feito a vontade ao optar por um novo cartão de visita, notoriamente mais modesto: A. Nimzowitsch – World Chess Championship Candidate. Deixava cair o ‘Crown Prince’, mas meteu na cabeça que haveria de conhecer todos os aspetos do jogo, todas as suas variantes, e escrever, em seguida, um livro que servisse de manual para os absolutamente fascinados por xadrez como ele. Chamou-lhe: ‘O Meu Sistema’.
Quando a Revolução Bolchevique chegou à Rússia, em 1917, as autoridades, que não gostavam muito de saber de cidadãos soviéticos à solta em lugares do mundo onde não pudessem controlá-los, trataram de saber em que sítio andava Aron. Descobriram-no na zona do Báltico, onde nascera, e foi de imediato alistado à força no Exército Vermelho. Não contavam com a imaginação nem com a força de vontade de Nimzowitsch. Alegou uma completa insanidade mental e teimou até à protérvia que não ouvia quase nada do que lhe diziam por ter uma mosca a zumbir-lhe dentro da cabeça. Ao fim de longos meses, desistiram dele e deixaram-no solto o suficiente para regressar a Berlim e tomar o nome de Arnold, coisa que também o libertou dos antissemitas que topavam à distância tudo o que chamasse Aron, Isiah ou Samuel. Mergulhou definitivamente nos tabuleiros.
A partir de 1922, Arnold Nimzowisch instalou-se na Dinamarca. Copenhaga era uma daquelas capitais calmas de que ele gostava particularmente pelo que por lá ficou até ao fim da vida, obtendo cidadania dinamarquesa, Apesar de ser um sujeito bem disposto, as vitórias de Alekhine e de Raul Capablanca no campeonato do mundo incomodavam-no como... como..., vá lá, como se tivesse uma mosca a zumbir-lhe dentro da cabeça. Alekhine ainda aturava, porque o considerava um estudioso profundo. Já Capablanca era mamífero mais difícil de engolir. Com o seu estilo de cavalheiro dos trópicos, embaixador cubano em várias embaixadas, era um dândi com um talento inimitável para o xadrez, com o seu estilo intuitivo e com os seus golpes circenses de jogar dez simultâneas de olhos tapados ou adivinhando com antecedência o número da jogada em que iria aplicar xeque-mate ao seu adversário. Para ajudar a dificuldade de digestão de Aron, nunca ganhou a Capablanca nas onze partidas que disputaram, a que terá obrigado ao consumo de muito bicarbonato de sódio.
A vaidade e o mau perder de Nimzowitch tornaram-se pasto para dezenas de histórias, não todas certamente verdadeiras. Savielly Tartakower, um polaco seu amigo, resumia assim a personalidade de Aron: «Faz-se de maluco para nos fazer a todos malucos». Depois encolhia os ombros e continuava a aturar-lhe os disparates. Hans Kmoch, xadrezista austríaco, é que nunca teve paciência para ele. Escreveu num longo artigo: «O problema de Nimzwovitsch é viver com a paranoia de não se tratado como os demais. Uma vez, num jantar com vários comensais, queixou-se alto e bom som que o seu prato não vinha tão cheio como o dos seus companheiros de mesa. Eu, sentado na sua frente, habituado a estas queixas tolas, ofereci-me para trocar de prato com ele. Aceitou. Mas observou bem a porção e voltou a reclamar: ‘Os outros têm os pratos bem mais cheios do que os nossos’». Não satisfeito, Kmoch publicou uma peça satírica sobre as esquisitices de Aron no Wiener Schachzeitung, jornal dos grandes xadrezistas. O tema era um jogo a brincar entre um profissional e um sistema programado por um génio – o Systemsson. Na verdade, o autor limitava-se a transpor para a ironia alguns dos mais belos e eficientes movimentos de xadrez de Aron Nimzowitch tinha inventado. O texto pode ter arrancado algumas gargalhadas mas permaneceu como uma sebenta pela qual se pode estudar a sabedoria do ‘Príncipe sem Coroa’..."

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