"Aquela final louca, em Istambul, onde cada equipa teve a sua parte para ser escandalosamente superior à outra, foi há 15 anos. Os primeiros 45 minutos fizeram o AC Milan desmantelar uma equipa que parecia não ter hipótese de reagir, mas, após o intervalo, o Liverpool ressuscitou com três golos e prolongou a penosa queda dos italianos até aos penáltis, onde Dudek imitou as pernas de esparguete que tinha dado a última Liga dos Campeões ao clube inglês
É o típico desastre anunciado pela pressa com que se tenta remediar o mal: o Liverpool perde a bola, os de vermelho são pacholas de movimentos, chamar de reacção é um eufemismo e quando Gerrard avança sobre um Kaká prestes a receber um passe, fá-lo pelo lado fechado, para onde o brasileiro já denunciou que não irá orientar a recepção. Dá uma ajuda para embelezar ainda mais a forma como médio se livra dele com um toque.
Kaká rodopia o corpo e vira-se, é poesia em movimento, a bola rola-lhe à frente e com o tempo e espaço que arranjou vê Crespo uns 35 metros lá ao fundo, escondido entre lateral e central, o mais esperançoso e otimista dos avançados ao correr pelo passe que, de facto, entrou - mas que para lhe chegar tinha de ser um dos mais geniais passes em finais da Liga dos Campeões, dos que dispensam ver todas as outras finais para se ter esta certeza.
Também com um toque, meio rosca, meio chapéu, num momento técnico de física e cálculo de trajectórias no cérebro, o argentino marca o 3-0 e Rafa Benítez nem o viu. Estava a olhar para o bloco de notas, a escrevinhar, já preocupado com o que haveria de dizer no balneário aos jogadores do Liverpool, ali a serem esquartejados por um AC Milan que espalhava os seus bocados calmamente pelo campo.
Havia 44 minutos de jogo e nada, em nenhures, de vivalma, mostrava que os ingleses tinham hipótese de sobreviver à final. Logo aos 50 segundos fizeram uma falta perto da área, Pirlo cruzou, esqueceram-se do mais rodado entre as gentes em campo e Maldini marcou. Aos 39 minutos, estavam os de Liverpool a refilar com o árbitro por uma suposta mão na área de Nesta enquanto Shevchenko punha Crespo a rematar o seu primeiro.
Era um desastre em curso. Gerrard admitira visualizar antes o jogo “três ou quatro vezes mentalmente”, certamente não este, um cataclismo que parecia roubar o interesse à que poderia vir após o intervalo, pois a ganhar estava o AC Milan, nos tempos em que era um temível portento, maquinado com Nesta, Maldini, Stam, Cafu, Pirlo, Gattuso, Seedorf ou Kaká, além dos já mencionados, todos jogadores que dificilmente amoleciam ou, vá, seriam surpreendidos por uma súbita revolta do orgulho adversário.
Os italianos "tinham os melhores jogadores do mundo em cada posição", sabia o capitão do Liverpool, pleno na sua consciência. "Não éramos tão bons como eles".
Benítez sabê-lo-ia, também, quando caminhou para o balneário, matutava o que poderia dizer e até perguntou a Paco Ayestarán pelo que haveria de puxar para, fora coisas táticas, de posicionamentos, que tinha nas notas, agitar as mentes dos jogadores. Se já difícil era “motivar uma equipa que perde por 3-0 falando em espanhol”, fazê-lo em inglês “ainda ia ser mais duro”, rebobinaria mais tarde, à revista “Panenka”.
Revolveu o óbvio, falou nos erros próprios, os golos eram culpa deles, das suas desatenções, era suicídio continuar a dar uma planície para Kaká galopar ao centro, Hamann entraria para salvar Xabi Alonso e fazer avançar Gerrard.
E depois tocou no orgulho.
A obrigação era que “saíssem de campo orgulhosos” deles próprios”, darem o máximo para “saberem que tinha feito tudo o que estava ao alcance”, porque “deviam algo aos adeptos do Liverpool que ali estavam” e “não se podiam dizer jogadores do Liverpool se baixassem a cabeça” e não voltassem ao campo “com ela levantada”.
Escrito assim, faz parecer que Benítez enfiou a mão na filosofia de bolso e sacou do que pôde, mas, no fim, diz que disse uma frase, e os jogadores já o disseram, que pode ter mexido mais com eles: “Dêem-se a oportunidade de serem heróis”.
Carregaram contra a área, mais pelo orgulho do que em ataque planeado, Riise tentou cruzar da esquerda, as costas de Cafu devolveram-lhe a bola, o norueguês mal olhou de novo e repetiu o provável cruzamento que queria acertar à primeira, rumo à cabeça de Gerrard, deixado sozinho por um erro indesculpável.
Aos 54 minutos tiraram um golo à desvantagem e roubariam outro logo aos 56’, sem cruzamento, mas de novo aproveitando um AC Milan encafuado junto à área, as linhas espremidas como se invadidos por um batalhão, a dar todo o espaço para a bola ser passada até Smicer a rematar de longe. E, aos 60’, com os italianos esbofeteados por palmas invisíveis, Gerrard sprintou campo fora para ir buscar um passe que toda a gente viu antes de acontecer.
Gattuso puxou-o, o capitão do Liverpool caiu e Xabi Alonso falhou o melhor penálti que teve, porque lhe deu a recarga que já celebrava antes de a bater baliza dentro. Um quarto de hora bastou para os ingleses se desentarrarem da cova e, depois, se aguentarem.
Os italianos despertaram da própria hipnose. Eram melhores, e por isso reagiram: Kaká volta a puxar os cordéis e Schevchenko a cabecear, uma e outra vez, contra alguma presença inamovível em cima da linha - Traoré, primeiro, depois Dudek, já no fim do prolongamento, com a dupla parada que salvou ali a Liga dos Campeões para o Liverpool, mesmo que ainda houvesse penáltis depois.
Encaminhado-se para a baliza, a pensar no Papa João Paulo II para os seus botões, o guarda-redes polaco ouve-se na voz de alguém, “Jerzy! Jerzy! Jerzy!”, é Carragher, o outro dos jogadores nados e criados em Liverpool e com sotaque peculiar, que se apressa a aconselhá-lo: “Lembra-te do Bruce. Ele fez coisas malucas para os desconcentrar em 1984. Tens de fazer o mesmo”.
Este Bruce era Grobbelaar, o guardião do farto bigode que defendia o Liverpool nos tempos mais áureos do clube. Naquela na final de Roma, contra a Roma, no tal ano de 1984, também se foi a penáltis, e Grobbelaar abanou as pernas que nem um embriagado a tentar equilibrar-se antes de os adversários rematarem. Resultou então e resultaria em Istambul, onde Dudek parou duas bolas depois de imitar como pôde as pernas de esparguete e confirmou o auto-resgate do Liverpool.
A haver jogo que justifique o cliché que no futebol diz para se levantarem cabeças, foi este, há 15 anos e em Istambul, quando uma equipa de caras com jogadores inferiores ressuscitou para virar uma final da Liga dos Campeões e dar mais uma história para a coleção que faz muita gente ficar sempre do lado de quem corre por fora - os underdogs, como dizem os ingleses."
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