"As claques deste jaez medram no emocionalismo destemprado, ameaçam no poderio consentido e até partilhado
1. A Direcção do Sporting tomou uma decisão corajosa quanto às chamadas claques (na lei, eufemisticamente, «grupos organizados de adeptos», com a curiosidade da palavra organizados) e às condições materiais, logísticas e de acesso de que vinham beneficiando. Medida que merece ser ponderada pelos outros clubes, seja qual for o nome e invólucro que tais grupos de sócios e adeptos tomem. É que, neste contexto, não está, apenas, em causa o clube de Alvalade. Está toda a expressão desportiva que, entre muitas infecções oportunistas, acolhe e até alimenta vírus de diversas naturezas, assim se pondo em sobressalto a sustentação desta actividade por onde passa muito dinheiro. Ponhamos de parte o habitual maniqueísmo clubista: se é dos meus é bom, se é dos outros mal, mesmo que seja exactamente o mesmo que se está a qualificar. Umas vezes a benigna compreensão e a dúctil ou envergonhada crítica para quem, antes, vociferava sem contemplações. E vice-versa. No fim, todos perdem respeitabilidade. Perdemos todos.
Nada tenho contra apoios dirigidos a grupos de sócios e adeptos. Em tese, são uma expressão de vivacidade, energia e promoção de valores e afeições, mas que deveriam ser sempre congregadores e não redutores e divisionistas, seja na vitória, como no insucesso. Infelizmente, com o tempo e as circunstâncias, muitas (mais não todas) claques transformaram-se em escolas de deseducação, centros intoleráveis de pressão e abuso de posição, polos de fragmentação ética, geracional e institucional, focos de extremismos de toda a espécie, janelas para actividade extra-futebol ilegítimas e ilegais, desertos de valores básicos de senso comum e respeitabilidade, instâncias inimputáveis de hierarquizações perversas, e agregados beneficiários de mediatismo exponencial. Os excessos das claques são notícia repetida mil vezes e publicidade gratuita, analisada ad nauseam quanto mais passaram a barreira da civilidade. Há media que, permanentemente, andam à caça de rebuliço, palavrões e golpadas das claques - qual alimento apetitoso - para, mais tarde, carpirem lágrimas de crocodilo com o que, antes, haviam alimentado frenética e despudoradamente. Salvaguardadas as devidas distâncias, é dessa propaganda sem custos, mas infelizmente eficaz, que também se alimentam o terror e seus agentes.
As claques deste jaez medram no emocionalismo destemperado, ameaçam no poderio consentido e até partilhado, corroem na falta de respeito mínimo e de mínima noção de exemplaridade, multiplicam-se na divisão de facções, ampliam medos em momentos de crise, vivem num ambiente de fora-da-lei, induzem o afastamento de pessoas de bem e de famílias dos estádios, deixam germinar a insegurança, protegem-se na massificação.
São estados dentro dos estádios.
2. No Verão foi publicada uma nova lei (113/2019, de 11 de Setembro) que altera o regime jurídico previsto na Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, criando um novo e mais exigente quadro legal relativo a fenómenos de intolerância e de violência nos recintos desportivos. Ainda que possa ser criticada nalguns aspectos específicos (por exemplo, o Benfica fê-lo em alguns pontos que considerou «desnecessários, insuficientes e inconstitucionais», que talvez devessem ser mais discutidos e até acolhidos, e de que destaco a obrigatoriedade do registo individual de adeptos), a lei procura articular adequadamente as responsabilidades de todos, no respeito básico pelo princípio da subsidiaridade, pelo qual não se deve passar a um patamar superior (máxime o Estado) o que melhor e com mais proximidade se deve fazer em níveis mais abaixo. Dito de outro modo, os clubes, em primeiro lugar, as associações e federações desportivas, em segundo lugar e, no fim da linha, o Estado regulador, fiscalizador sancionatório e, se for o caso, judiciário. É tempo de se erradicar o proverbial estilo de passa culpas e de, no fim, se exigir aos outros o que não se é capaz de exigir a si próprio.
No fim de contas, o grande desafio que ora se coloca com a nova legislação é o da sua eficácia,pois de boas intenções está o Diário da República cheio. Assim haja vontade, competência e bom senso. Apesar do normativo só se aplicar a partir da próxima época(!), o que se vem passando no âmbito do Sporting é um primeiro repto, que se espera seja vencido, sob pena de as coisas começarem mal e jamais se endireitarem.
Pena é que uma lei tão recente tenha sido contemporânea de um acórdão de um Tribunal da Relação, que consagra, em modo de jurisprudência, o mundo do futebol como uma realidade à parte, que se pode resumir neste impensável raciocínio de que «um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral e contra as regras de ética desportiva é de alguma forma tolerado nos bastidores de cena futebolística». Como bem resumiu o presidente do Comité Olímpico de Portugal, José Manuel Constantino, «na perspectiva daquele tribunal, um recinto desportivo é uma espécie de offshore onde, no seu interior, se pode praticar o que é criminalizado no exterior». Quer dizer, no futebol em vez de tolerância zero, há «sobeja tolerância à condição». Neste caso do acórdão, é no palavreado, quem sabe amanhã se na violência física e patrimonial.
3. Para atitudes radicais, medidas excepcionais. Foi assim que olhei, de fora, para a decisão leonina. Ao que li, parece haver um nexo de alguma causalidade entre os benefícios, sinecuras, excepções e prioridades que são concedidas a certas claques e as externalidades negativas, de consequências não imediatamente visíveis ou tangíveis, que provocam na instituição e nos seus stakeholders. Não esqueçamos que, no caso de futebol, não há apenas sócios e adeptos, mas também accionistas que arriscam capitais, financiadores, patrocinadores, detentores de activos, fisco, instâncias internacionais, etc. Ou será que temos de dividir os sócios de um clube entre os que pagam as suas quotas e ingressos e cumprem as sua regras estatutárias e éticas e os que se acham acima de qualquer exigência ou justificam os excessos sempre invocando artificiosamente serem monopolistas de um patológico amor ao clube? Por que razão, face a perturbações e desacatos criados por outros sócios e adeptos, deverão as quotas dos sócios cumpridores contribuir para as multas nacionais e internacionais com que os clubes são castigados, ou mesmo arcar com os prejuízos de restrições impostas por instâncias disciplinares?
Este combate não isenta nenhuma instituição, nenhum clube, nenhum dirigente do exercício de autoridade. A verdadeira liderança, aliás, advém do exemplo, e não do poder formal e efémero. Não nos deixemos toldar por um qualquer inciso adversativo, indulgente, indigente ou falacioso, tal como um «se», «mas», «talvez», «salvo se», «mais ou menos», que tudo desculpa na voragem do tempo e na erosão da memória.
4. Boas notícias da Europa. Muito provavelmente, em 2021/2022 voltaremos a duas (ou três) equipas na Champions, mais por demérito das equipas russas do que por mérito das portuguesas. Bom desempenho do SC Braga, até agora a única equipa invicta e líder no seu grupo. Boa exibição na Europa do Vitória de Guimarães em Londres, diante do Arsenal e com 2500 mil vitorianos a calar o Emirates.
Já dos grandes não se poderá dizer tanto: o Benfica alcança a sua primeira vitória bem sofrida, por sinal. O FC Porto perde 5 em 9 pontos, em tese bem atingíveis e o Sporting, jogando pouco, venceu sem convencer. Apesar de tudo, com diferenças entre eles: o Benfica na Champions contra um Lyon que, nesta competição, não perdia um jogo fora de casa há 3 anos (num total de 11 partidas). Já o FCP e o SCP, na mais acessível Liga Europa, jogaram contra uns escoceses sofríveis e uns noruegueses medíocres. Com esta sua 200.ª vitória nas competições europeias, o Benfica passou a fazer parte dos únicos oito emblemas que alcançaram esta marca. Uma nota final para o magnífico e inteligente golo do Pizzi, que alguns tentaram desvalorizar face ao erro do guardião da equipa francesa. Tivesse sido Cristiano Ronaldo a marcá-lo e seria, seguramente, «uma obra de pura arte». Enfim...
5. Voltou uma competição de que já não me lembrava: o nosso campeonato. O Benfica prossegue a senda de ganhar, jogando muito pouco. Um mistério por desvendar, apesar da onda de lesões... Em 8 jornadas, houve, na equipa benfiquista, um acumulado de 30 ausências de impedidos: Chiquinho, André Almeida, Florentino, Gabriel, Conti, Gedson, Vinícius e agora Rafa e RDT... Só azar? Como se explica um relvado tão lastimável e responsável pela maioria das lesões mais graves?
O Famalicão ofereceu um hat-trick de fífias ao Porto, assunto que, por certo, se tivesse acontecido com o Benfica, já teria proporcionado comunicados de Jotas insinuando coisas mefistofélicas diante de tal despudor!
O Boavista é agora a única equipa sem derrotas e o Vitória de Guimarães é o simétrico do Benfica, isto é joga bem e perde."
Bagão Félix, in A Bola