"Vou começar este texto com uma daquelas charadas saudosistas, que os mais novos repudiam mas os mais velhos (como eu) entendem:
- "No meu tempo"...
Sim. No meu tempo e no final de cada treino, fizesse chuva ou fizesse sol, estivesse um frio de rachar ou um calor insuportável, a malta juntava-se para a habitual peladinha.
Claro que havia sempre os que preferiam não arriscar (ou por terem jogo ou por recearem lesões), mas a maioria via naqueles minutos finais a cereja no topo do bolo. O prémio merecido depois de hora e tal a dar no duro, a dar forte e feio, a dar tudo.
Por ser profundamente amador, o processo era muito simples: pegávamos nos coletes, distribuíamos pelos que ficavam e organizávamos a jogatana em dois, três minutos.
A coisa funcionava sempre bem: as balizas eram improvisadas com camisolas ou botas, o terreno era o pedaço de relva que estivesse disponível e as marcações, bem... as marcações eram calibradas a olhómetro. E bastava. Bastou sempre.
Não havia desculpas, não havia tretas, não havia tempo a perder. Tudo servia de palco, porque a vontade era muita e a loucura era maior.
É verdade que nem todos eram prendados ("Presente, Sra. Professora!"), mas as ganas superavam as diferenças de qualidade entre uns e outros.
De vez em quando e por entre pontapés falhados, remates no vazio e gritos desvairados, lá aparecia um ou outro dedito inchado, joelho marcado ou rasgão na perna.
Tudo, claro, em nome dessa paixão doida que, mais do que qualquer outra coisa, nos ligava ao futebol. Ao mesmo futebol em que trabalhávamos.
Hoje é claro para mim que esses momentos, essa entrega total, ajudava-nos a ter "melhores sensações" para aquilo que fazíamos enquanto profissionais.
Viver o momento fisicamente, sentir o esforço e o cansaço, perceber a frustração da falha e a euforia da vitória, entender a reacção a quente e a emoção efervescente, passar por elas, é fundamental para estarmos um passo à frente.
Saber ler o jogo e a linguagem dos protagonistas, absorver a pressão que sentem, o desgaste a que estão sujeitos e a dureza dos contactos, é crucial para arbitrar com qualidade, sobriedade e saber prático. Com saber real.
A gestão de emoções num espectáculo que é emocional, dos pés à cabeça, é meio caminho andado para o sucesso do nosso trabalho. E é-o mais, muito mais do que o cumprimento das regras "by the book". Do que levar o livro das leis debaixo do braço e aplicá-lo em bruto. De forma quase militarista.
O saber teórico é fácil. É tão fácil que qualquer pessoa pode aprendê-lo. Basta que leia as regras. Basta que estude. Basta que tenha dois dedos de testa.
Já a vivência do relvado é outra coisa, completamente diferente.
Qualquer jogador, treinador ou dirigente respeita mais o árbitro que o entende, que compreende o seu esforço e a sua missão. E é aí, nessa aceitação, que um bom árbitro se distingue dos outros.
O bom árbitro é aquele que arbitra com a sensatez dos sábios e com a humanidade dos humanos.
O bom árbitro gere emoções, entende motivações, antecipa, previne, evita.
O bom árbitro não compra problemas e não confunde autoridade com autoritarismo. É inteligente, é compreensivo e é estratega. Sabe o que quer e como consegui-lo, de forma a que todos o cumpram sem hostilizá-lo.
O bom árbitro ganha o jogo antes do jogo começar. Na forma como se relaciona com os intervenientes, na forma como se apresenta, como comunica, como orienta qualquer questão para a solução e não para a colisão. Nunca para a colisão.
O bom árbitro não repudia, não abusa do poder nem se impõe pelo medo. Faz-se respeitar e, por isso, conquista o respeito de todos, mesmo quando erra, mesmo quando falha, mesmo quando se engana.
O bom árbitro não tem que disparar cartões para segurar o jogo. Segura o jogo com o olhar, com a força da sua imagem, com a plenitude da sua presença.
No futebol moderno, tão exposto e mediatizado, os árbitros - os eternos patinhos feios da indústria - só vingam se forem assim: sensíveis para a função.
Têm que conhecer as regras sim, mas têm também que ser psicólogos, peritos em relações humanas, craques na gestão de emoções e tantas vezes, pais, professores e amigos.
Esse saber é, em parte, inato e, em parte trabalhado. Nos dias que correm, quem não apanha esse comboio jamais será árbitro de verdade. Será, apenas, um eterno apitador.
E é aí que mora a diferença entre o sucesso e o fracasso, porque faltas e faltinhas, cartões e cartõezinhos, qualquer um falha, qualquer um acerta.
A questão de fundo não é essa. Nunca foi essa. Nunca será essa."
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