"Chamemos-lhe mercadologia. É o estudo das movimentações no mercado futebolístico, o seu impacto no comportamento dos seres humanos e na conta bancária de Jorge Mendes. Nos primórdios da mediatização global do futebol, os miúdos sonhavam ser o novo Eusébio, o novo Crujff, queriam imitar as fintas de Maradona e os golos acrobáticos de Van Basten. Mais tarde, os treinadores ascenderam ao estatuto de estrelas e crianças de todo o mundo, em vez de bolas, começaram a levar para a escola cadernos pautados com relatórios de jogo. Hoje, época em que a mercadologia ganhou autonomia e é uma actividade humana por direito próprio, os petizes olham para um Rui Pedro Braz e sonham com o dia em que num estúdio de televisão proferirão as indeléveis palavras: “estamos em condições de assegurar que Bentinho Vilanova será jogador do Atlético de São Pedro da Cova nas próximas cinco épocas por um valor a rondar os seis milhões de euros por ano, livres de impostos.”
O futebol jogado em campo é agora um mero pretexto para se discutir durante horas a fio quem compra, quem vende, quem empresta, quem fica, quem sai e quem vai pensar no sentido da existência para a equipa B ou nas fileiras de um clube cipriota. Antigamente a mercadologia limitava-se a umas breves semanas no defeso ou a ocasionais capas dos desportivos. Hoje tornou-se uma obsessão nacional capaz de despertar mais interesse que um Tondela-Desportivo das Aves. Nas televisões imperam os mercadólogos, permanentemente “conectados” (enquanto um fala, o outro baixa a cabeça e, com indicador, faz deslizar as informações no smartphone) a fontes próximas do processo. Os contornos dos negócios, nebulosos para os leigos, são a sua especialidade: sabem se um empréstimo contempla uma opção de compra, se a opção de compra afinal é obrigatória, qual a taxa de empréstimo e o valor final, a percentagem que cabe ao clube vendedor na mais-valia de uma futura venda, se o negócio envolve cedência de outros jogadores, se o clube já chegou a acordo com estes, as modalidades de pagamento, contrapartidas, compensações, etc.
Os negócios encontram-se geralmente num de dois estados: ou estão por horas ou afiguram-se muito difíceis. Por vezes, não tão raramente quanto isso, ultimam-se detalhes. Pode já estar tudo acertado com o clube, mas agora é preciso convencer o jogador ou vice-versa. Há clubes vendedores que se mantêm irredutíveis, outros que não querem cortar as pernas aos jogadores e há jogadores que desejariam literalmente cortar as pernas aos dirigentes.
Um dos indicadores mais fiáveis da concretização iminente de um negócio é quando se diz de algum jogador que “já se encontra na capital espanhola”. Um jogador que esteja a negociar com o Chelsea desloca-se a Londres, os que têm propostas do Paris Saint-Germain apanham um avião privado para Paris, mas se o clube interessado é de Madrid a cidade é sempre referida, por antonomásia, como a “capital espanhola.” Estar na capital espanhola é o equivalente moderno à travessia do Rubicão. Uma vez lá chegado, os dados estão lançados, alea jacta est. É o chamado ponto de não retorno.
Além das fontes conhecedoras do processo, nem sempre de confiança, a mercadologia tem vindo a desenvolver métodos cada vez mais eficazes de previsão de transferências que incluem a análise detalhada das contas das redes sociais e declarações das progenitoras dos jogadores. Uma t-shirt com os dizeres “I love kebab” pode indicar uma transferência iminente para a Turquia e uma reunião com um administrador de uma SAD pode ser apenas um encontro de velhos amigos. Uma publicação da mulher de um jogador com malas feitas é sinónimo de despedida e um like no comentário de um adepto de um clube um indício da preferência do atleta.
Nada escapa aos mercadólogos e os próprios jogadores já aprenderam a comunicar por cifras neste admirável mundo novo das redes sociais. Tudo isto alimenta trezentos episódios de telenovelas. Para os mercadólogos e os seus empregadores o ideal é quando a “situação se encontra num impasse”. Esse é o estado de um negócio que os mercadólogos preferem. Os impasses prolongam-se, arrastam-se e, como um carro funerário, obrigam toda a gente a acompanhá-lo a um ritmo respeitoso. Ninguém se atreverá a buzinar e a berrar pela janela do carro: “anda lá com isso, ó lesma!”.
Com o entusiasmo de quem acabou de receber a notícia de uma herança, os mercadólogos proclamam triunfantes: “não há novidades!”, “continua tudo na mesma!” ou “o clube prometeu um comunicado para a próxima semana!” No reino da mercadologia, o maior acontecimento é não acontecer nada. Daí o ar pesaroso quando têm de cumprir o doloroso dever de anunciar ao mundo que o negócio está fechado. Fechado, encerrado, como um caixão. “Este é o tipo de notícia que nunca gostaríamos de dar: Ketinho Borda d’Água é oficialmente jogador do Atlético Baracondense. A confirmação chegou esta tarde. Ainda havia a esperança de que Ketinho chumbasse nos testes médicos, mas confirmou-se o pior cenário. O avançado tem uma saúde de ferro e vai mesmo jogar em Baraconda nas próximas três épocas. Aos adeptos enlutados, apresentamos as mais sentidas condolências. Bem, felizmente sobre o negócio de Trastinho para o Desportivo Zarabatana não há novidades absolutamente nenhumas. Zero. Nicles. E é com esta nota positiva, de grande esperança, que terminamos o nosso programa de hoje.”
Porém, nem tudo é imobilismo. O mercado de transferências oferece diversos tipos de entretenimento dramático. Há leilões e carrosséis, telenovelas e, como se de um desporto paralelo se tratasse, corridas. Quando um jogador se destaca, o pelotão de interessados é compacto e estende-se por todo o continente. Em geral, é não tanto um pelotão, mas um cardume, pois os participantes na prova são quase todos “tubarões”. “PSG, Bayern, Real, Barcelona, City, United e Arsenal” estão na corrida por Zé Canelada” juram os jornais assim que Canelada mostra os seus dotes nos juvenis do Recreativo de Trapizomba. Depois, como numa longa etapa de montanha, o pelotão vai-se fragmentando e, em vez dos tubarões anunciados, muitas vezes quem chega à frente é um carapau de corrida, de muito paleio e bolsos magros. Nas narrativas habituais já estudadas pela mercadologia, o Tottenham, por exemplo, é um clube que costuma estar na corrida, mas, qual Fernando Mamede, geralmente desiste a meio, sobretudo quando David Levy, o presidente do clube, percebe que estar na corrida implica pelo menos a intenção de desembolsar uma determinada quantidade de dinheiro para adquirir um jogador.
Na última semana, foi a transferência de João Félix a dominar todos os espaços de mercadologia. Segundo consta, estará tudo acertado, mas ainda não há confirmação, o que também é uma situação bastante apreciada pelos mercadólogos. Segundo estes, havia mais do que um clube disposto a “bater” a cláusula de rescisão “cifrada” em 120 milhões de euros (é preciso dominar o léxico, a langue de bois, desta área do conhecimento). Infelizmente, o clube que, ao que tudo indica, avançou para o negócio é o único clube que tem de aguardar que outro clube bata a cláusula de rescisão de outro jogador, também cifrada em 120 milhões a partir de 1 de Julho (até aí seria de 200 milhões), para então poder bater a cláusula de rescisão.
Porém, todos garantem que já há acordo com os representantes do jogador que, como não podia deixar de ser, “esteve na capital espanhola.” Os representantes do jogador e o próprio jogador foram vistos a jantar em Madrid, o que significa que, por enquanto, João Félix não delega em terceiros a função de se alimentar. De regresso a Portugal, houve mesmo um órgão de comunicação que informou os seus leitores que João Félix teria pagado 14,70 euros por uma pizza num restaurante algarvio, uma ninharia para quem se prepara para receber sete milhões de euros por ano “net”, como gostam de dizer certos mercadólogos.
O astronómico valor da cláusula e o hipotético salário de João Félix no Atlético Madrid empurraram os jornalistas para aqueles exercícios que visam traduzir para o cidadão comum, sempre a contar trocos na carteira, a magnitude dos valores. Assim, ficámos a saber que 120 milhões de euros são 48 vezes o peso de Félix em ouro, que dariam para comprar 30 Lamborghinis e várias vezes a casa mais cara de Portugal. Um jornal chegou ao pormenor de dizer que com o salário de João Félix seria possível comprar não sei quantos milhões de bicas, o que à primeira vista pode parecer muito, mas que só daria para duas semanas de treinos do Boavista de Jaime Pacheco.
Os rivais do Benfica têm manifestado a sua incredulidade quanto aos valores do negócio. Não acreditam que o jogador valha isso, mas se valer mesmo (ou seja, se alguém pagar os 120 milhões) então Bruno Fernandes, dizem, vale o dobro. Bruno Fernandes é, pois, um jogador cujo valor do passe está indexado à cotação internacional do Félix. Podia ser pior. Mas há mais. O Atlético Madrid é visto como um peão nas jogadas do agiota de alto gabarito Jorge Mendes. A concretizar-se a venda pelos propalados 120 milhões só pode querer dizer que Mendes tem uma comissão de 30, 60 ou 100%. Quem sabe, até mais do que isso!
Já o Benfica, não só terá de pagar uma comissão brutal ao empresário como será obrigado a contratar vários jogadores ao Atlético por valores superiores a 50 milhões. Resultado, Félix vestirá a camisola do Atlético e o Benfica, graças à intermediação mágica de Jorge Mendes, poderá pagá-lo em suaves prestações durante um prazo não inferior a trinta anos, suportando parte do ordenado e juntando no negócio mais dois ou três jogadores formados no Seixal. A propaganda do Benfica, dizem, tudo fará para passar a ideia de que se trata da maior transferência de sempre do futebol português quando é sabido que essa foi, é e será sempre a venda de Bebé ao Manchester United por nove milhões de euros.
In illo tempore, os adeptos suspiravam pelo fim do defeso e pelo regresso dos artistas aos relvados. Hoje só querem sentir a brisa refrescante ou a ventania glacial que entra pela janela de transferências aberta todo o ano. E quando já não há mais nenhuma transferência para anunciar, irrompe a meta-mercadologia, com as transferências de mercadólogos entre órgãos de comunicação social. O mercadólogo torna-se, desse modo, o alfa e o ómega, o princípio e o fim de todas as coisas futebolísticas. Algures num estádio vazio, vinte e dois atletas correrão atrás de uma bola, mas isso não interessará a ninguém."
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