"Ruptura parcial dos ligamentos? Lesão no menisco? Estiramento? Entorse? Fractura de stress? Contusão? Lombalgia? Bursite? Luxações?
Sim, há uma panóplia de lesões que podem afectar qualquer desportista. São, como diz o povo... "ossos do ofício".
Mas a verdade é que uma “brincadeira” destas pode ser um verdadeiro pesadelo para qualquer atleta. E isso acontece, não apenas pelo que dói (e não se iludam, dói que se farta), mas sobretudo pela consequência que acarreta: a auto-estima baixa, o moral desaparece e o tempo de paragem/recuperação – mais ou menos demorado – pode significar o afastamento da equipa, a não prossecução de determinados objectivos ou a saída para outras paragens.
Não é só chato. É muito, muito chato.
Mas, caro leitor, se pensa que esses "danos colaterais" são exclusivos de quem pratica actividades desportivas... então pense duas vezes. Há quem não se expunha à dureza dos contactos e, ainda assim, não se livre destes sarilhos.
Assim de repente (e vá se lá saber porquê), lembrei-me dos árbitros de futebol.
Sim, é verdade que não dão, nem levam pancada, não fazem remates a 120 km/h nem entram de carrinho, não saltam com adversários nem se esticam para interceptar uma jogada, mas... correm como se não houvesse amanhã.
Correm, correm e correm.
Não sei se têm noção, mas um árbitro de futebol profissional faz, em média, cerca de 9 a 12 Km por jogo. A intensidade, o estilo, a cadência e passada, tudo varia em função do seu estilo e também das características da partida: há muitos sprints, corridas laterais e de costas, jogging, meras acelerações, enfim... há de tudo um pouco em noventa minutos de bola, mas a intensidade é grande, crescente e isso requer muito trabalhinho de casa.
Mas, mais importante do que a resposta física que lhes é exigida dentro de campo, é a necessidade de manterem a lucidez e o discernimento num patamar bem elevado. Afinal de contas, há sempre a forte possibilidade de terem de tomar uma decisão importante na última jogada do desafio. No último lance do encontro. Sobre o apito final. Uma decisão que pode dar uma vitória, um apuramento ou até um título de campeão.
Para manterem esse nível, treinam diariamente. Treinam muito. E fazem provas físicas com regularidade.
É dose, acreditem.
Este desenho só facilita a verdade dos factos: os árbitros também se lesionam. E, se ainda têm dúvidas disso, permitam-me o testemunho na primeira pessoa.
Nos dezanove anos que estive na primeira categoria fui obrigado a fazer quatro cirurgias: três ao Tendão de Aquiles (ao mesmo Tendão de Aquiles) e uma à coluna cervical.
Coisa pouca.
Não fui dos mais abençoados, já se percebeu (o cenário habitual é menos mau), mas obviamente estou avalizado para vos confessar que as lesões foram, de facto, o maior obstáculo da minha carreira.
Ainda hoje não sei como consegui mantê-la durante tanto tempo e ao mais alto nível. Deu muito, mas mesmo muito trabalho. E sofrimento.
Se quiserem que troque por miúdos, pensem nisto: por cada cirurgia parei seis meses (a operação à coluna acarretou paragem superior, de quase nove meses).
Antes de chegar à sala de operações, fiz o óbvio, o que toda a gente faz: tentei vários tratamentos conservadores, no sentido de evitar a opção mais difícil. Tomei medicação (paletes de medicação), fiz fisioterapia, mesoterapia, infiltrações, massagens, acupuntura e afins. Sei hoje que apenas adiei o inadiável, mas isso deu-me esperança e despertou em mim forças, energia que nem sabia ter.
Depois de cada cirurgia, a recuperação era forçadamente lenta e mentalmente castradora. Começava com hidroterapia, depois fortalecimento muscular, mais fisioterapia, reintegração gradual ao treino, etc, etc. Um calvário. A parte invisível, porventura a pior, era aquela que acontecia depois, quando a lesão estava aparentemente tratada. O regressar à competição sem medo de pôr o pé no chão, sem receio de correr, de travar ou mudar de direcção.
Percebi que, de cada vez, o estilo de corrida mudava. A forma de pisar o terreno também. Quando se vai à faca, nada fica igual. E se acharmos que fica, está lá a cicatriz para mostrar o oposto. Ad eternum.
O receio de reincidir aumentava a tensão, e a vontade de defender a zona antes fragilizada dava lugar a outras pequenas mazelas: era aí que apareciam as contraturas, as microruturas, as mialgias de esforço and so on, and so on. A luta para recuperar a massa muscular era titânica e fiquei sempre com a sensação que a perdi.
Depois... bem, depois havia a cabecinha, que por muito racional que tentasse ser, tinha sempre tanto de irracional. Lá aparecia o medo de treinar forte, porque o tendão podia voltar a rasgar ou o pavor de fazer um movimento brusco, porque a hérnia podia dar notícias de novo.
Sabem o que vos digo? Um verdadeiro pesadelo. O meu, mas também o de todos os árbitros que passam por processos destes. Safei-me das roturas de ligamentos, mas sem pensar muito, encho duas mãos cheias com nomes de colegas que não tiveram a mesma sorte.
Faz parte, claro, mas muda tudo. O rendimento fica afectado porque a confiança fica abalada. O discernimento parece que está todo lá, mas o subconsciente trava a euforia de fazer tudo sem receios. O foco, a concentração, a predisposição para aquilo que é verdadeiramente importante não são os mesmos. Por muito que nos esforcemos, as coisas não voltam a ser como foram.
A lesão é pior, bem pior, do que o insulto gratuito, a ofensa momentânea ou o isqueiro que voa na direcção errada. Talvez por isso seja cada vez mais importante dar aos "homens do apito" acompanhamento personalizado, que vá ao encontro das suas características de treino, preparação e pós- jogo.
Nesta matéria, a arbitragem do futebol profissional já consegue responder hoje muito melhor do que fazia há uns anos (sem sombra de dúvida), mas, como em tudo na vida, há sempre espaço para melhorar e crescer naquilo que desempenha papel fundamental no sucesso desta actividade.
Isto de acertar e errar, dentro de campo, tem muito que se lhe diga, fora dele."
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