terça-feira, 25 de dezembro de 2018

"Ser genro do Inácio foi um trauma porque as pessoas deixaram de olhar para o meu valor e passaram a ver-me só como o genro dele"

"Armando Sá, o defesa direito que chegou a jogar a ponta de lança e começou por gostar mais de hóquei em patins do que de futebol, está há cinco anos a treinar uma equipa de futebol no Canadá. Quando, aos 11 anos, teve de deixar a mãe em Moçambique para se juntar ao pai e ao irmão em Portugal, mal sabia que seriam precisos outros tantos anos e uma chamada à selecção do seu país natal para voltar a revê-la. Depois de ganhar nome no Benfica, partiu à procura de outras experiências, em Espanha e Inglaterra, tendo terminado a carreira no Irão, onde viveu algumas aventuras

Nasceu em Moçambique. Os seus pais são ambos moçambicanos?
A minha mãe é moçambicana, o meu pai nasceu lá mas é de famílias portuguesas. Eles separaram-se quando eu tinha seis, sete anos. O meu pai veio para Portugal.

Tem irmãos?
Somos cinco ao todo. Da minha mãe e pai somos dois, depois a minha mãe teve um rapaz e uma menina de outro casamento e o meu pai teve outro rapaz num outro casamento. Eu sou o mais velho. 

O seu pai veio para Portugal e o Armando ficou em Moçambique com a mãe?
Sim. O meu pai na altura trouxe o meu irmão, que nasceu depois de mim. Eu não podia vir porque já andava na escola e era muito complicado naquele tempo sair de Moçambique, sendo menor e estando a estudar. Ele acabou por trazer o outro que ainda não tinha começado a escola. Mais tarde tentou de todas as maneiras que eu também fosse para Portugal. Naqueles tempos em Moçambique a situação não era muito favorável. Quando houve oportunidade de eu vir para Portugal já tinha 11 anos.

Quais são as memórias mais fortes que tem da sua infância em Moçambique?
Tenho memórias do meu pai que era guarda-redes de hóquei.

Em que clube?
No Clube de Desportos da Costa do Sol, que era antigo Sport Lourenço Marques e Benfica. Lembro-me de nos intervalos dos jogos, ir para o meio do campo jogar à bola. Essas memórias ficaram comigo, do meu pai lá comigo.

O que fazia a sua mãe profissionalmente?
A minha mãe era cabeleireira, trabalhava num salão de cabeleireiro. Neste momento é florista.

Teve padrasto?
Tive um padrasto. Não tive muitos problemas na infância, o único que tive foi o dos meus pais se terem separado, que é sempre complicado e, claro, as dificuldades do país que não eram as melhores para ter um bom futuro.
Quando vem para Portugal com 11 anos, vem com a sua mãe ou vem sozinho?
Aí começam as minhas aventuras. A minha mãe meteu-me no avião, sozinho. Tinha chegado a um acordo com o meu pai, para que eu tivesse um futuro melhor. Como deve calcular para a minha mãe ficar sem dois filhos...

Ficou com o coração partido.
Mas foi uma grande mulher. Fez esse esforço, esse sacrifício para que eu tivesse um futuro melhor em Portugal. E são grandes amigos, é o meu grande orgulho, os meus pais serem amigos até hoje e partilharem tudo sobre os filhos, é fantástico.

Mas estava a contar que a sua mãe o meteu no avião e fez a sua primeira viagem de avião sozinho aos 11 anos.
Sim, lembro-me que ela não sei como acabou por entrar na porta de embarque e meteu-me no avião. Só me lembro de por uns phones e de vir a ouvir música a viagem toda.

Chorou muito?
Chorei bastante. Não é fácil separarmo-nos da mãe, eu nem tinha bem a noção para onde é que ia. E lá vim, todo amuado, todo triste no meu canto. As hospedeiras até foram porreiras comigo, vinham perguntar se eu precisava de alguma coisa. Quando cheguei a Portugal, ao aeroporto grande, não tinha a noção de nada, via aqueles carrinhos para levar as malas, e andava em cima dos carrinhos a brincar (risos). Depois, quando cheguei à saída dos passageiros, na rampa, meti-me num carrinho e aquilo começou a deslizar e eu não conseguia parar (risos) e quem o travou foi o meu pai. Foi o primeiro contacto que tive com ele em Portugal.

Foi viver com o seu pai, irmão e madrasta?
Sim. Mas antes disso, esqueci-me de contar uma coisa. Como a minha mãe tinha passado a porta de embarque, depois não a deixaram sair. Perguntaram como é que ela tinha entrado, ninguém tinha reparado. Acabou por ter problemas. O avião tinha de aterrar em Lisboa em condições, se acontecesse alguma coisa ela podia ser responsabilizada porque estava numa zona proibida.

Então só a deixaram sair do aeroporto depois do Armando ter chegado?
Sim, só depois do avião chegar é que ela foi libertada.

Em Moçambique já tinha começado a jogar futebol num clube ou só jogava à bola na rua?
Jogava na escola, na rua, mas não era muito apaixonado pelo futebol.

Então?
Era pelo hóquei, porque via o meu pai jogar hóquei. Adorava ver jogos de hóquei. Só que o meu pai foi embora e entretanto vejo pela primeira vez o Campeonato do Mundo de futebol, em 1986, no México, e começo a ter a noção do que é o futebol. A partir daí começo a ter ídolos no futebol.
Quem foram os primeiros ídolos?
Adorava o Michel Platini, jogava de forma incrível. Todas as selecções tinham um ídolo para mim. O Mancini, da Itália. Adorava o Bento, guarda-redes português. Mas o meu ídolo mesmo era o Platini. 

Nessa altura já torcia pelo Benfica?
Não, nem tinha noção dos clubes, tinha uns 10 anos. Em Moçambique o Costa do Sol era o Benfica da altura, mas as cores são completamente diferentes. São azul e amarelo.

Quando chega a Portugal, nas primeiras semanas lembra-se do que é que estranhou mais?
Estranhei o frio (risos). Passava muito mal com o frio. Os meus lábios rebentavam todos. Naquela altura fazia frio a sério, acho que agora não faz tanto frio. As coisas boas foram as condições que acabei por ter. O meu pai ofereceu-me logo uma bola de futebol como presente.

O que é que o seu pai fazia profissionalmente?
Trabalhava no controlo de pestes, na desinfecção.

Foi viver para onde quando cá chegou?
Para a Amadora. O meu pai também estava a lutar pela vida, tinha vindo de Moçambique, estava a construir a vida aos poucos, acho que antes tinha vivido em Viseu, depois no Porto. Depois veio viver para Lisboa e comprou o apartamento. Foi aí que decidiu que já tinha condições para me trazer. E lá fui eu viver para o Casal de São Brás e fazer novos amigos.

Foi fácil fazer novos amigos?
Foi. Quando tu jogas futebol as amizades vêm naturalmente. E se tens um talento acima da média, começam a convidar-te cada vez mais.

Como é que de repente o futebol se torna um modo de vida?
Fui convidado pelo professor Ferreira, treinador lá do bairro, para jogar num clube que era o Atlético de São Brás, onde no início jogava futebol de cinco.Todos os miúdos na rua tinham grupos para jogar, ele via quais eram os melhores e acabou por levar-me para esse clube. Fazíamos aqueles torneios da Brandoa, do Casal, da Amadora, comecei a gostar e a levar aquilo mais a sério.

Quando era criança o que dizia que queria ser?
Em Moçambique queria ser jogador de hóquei, depois quando vi o avião, queria ser piloto (risos). Vi aquilo tão grande, que na viagem de 10 ou 12 horas de Moçambique para Lisboa, o meu sonho era ser piloto (risos). Depois é que veio o jogador de futebol, quando comecei a entender a realidade.

Depois do Atlético de São Brás vai para onde? Para o Damaiense?
Vou. Ainda no Atlético de São Brás quando comecei a jogar, a escola começou a correr mal. Era difícil para mim apanhar a matéria. Fui matriculado um ano abaixo porque tinha de apanhar as bases. Só que sendo o mais velho da classe não me sentia muito confortável e tive uma certa dificuldade em adaptar-me. Comecei a ter umas falhas, recebi umas más notas e o meu pai pôs-me de castigo e proibiu-me o futebol.
O que fez?
Aí é que eu disse “O futebol não, por amor de Deus, não me tires o futebol”. Comecei a sentir e a perceber que o que eu gostava mesmo era de jogar futebol. E um dia o treinador, o professor Ferreira, veio bater à porta da minha casa e foi pedir ao meu pai para eu ir jogar. Estávamos para ser campeões e o meu pai lá me facilitou a vida e deixou-me ir.

Foi para o Damaiense porquê e como?
No Atlético de São Brás, ainda tive o meu primeiro contacto com o futebol de 11. Entretanto houve captações no Damaiense, no Estrela da Amadora. Fui ao Estrela da Amadora que fazia as captações no campo do Damaiense. Só que eu tinha uma lesão de crescimento nos joelhos tinha dores duas “bolas” nos joelhos por causa do crescimento rápido, tinha dores e fui lesionado para as captações do Estrela. Acabei por não ficar. Nem sequer conseguia correr. Entretanto, ouvi dizer que no Damaiense também ia haver captações e fui lá. Já estava melhor e acabei por ficar uma época e pouco.

Quando vai para o Belenenses tinha quantos anos?
Vou na altura dos juvenis, acho que tinha uns 14, 15 anos.

Como é que lá vai parar?
É aquela coisa de estar no momento certo, na hora certa, este é aquele meu momento do futebol. Estou na escola e tenho um professor que se chama João Couto, que é agora treinador dos juniores do Sporting, e que na altura era treinador do Belém. Ele era professor de educação física, vê-me a jogar na escola e pergunta-me: “Porque é que não vens às captações a Belém e não vens treinar connosco?”. Acabei por ir fiquei no Belém. Digo sempre que esta foi a minha estrela da sorte, ter uma pessoa que na hora certa me encaminhou para o sítio certo.

Quanto tempo ficou sem ver a sua mãe?
Treze anos. Foi duro. Na altura falar ao telefone era muito mais complicado. Uma chamada para Moçambique, imagine o valor, e o meu pai não tinha condições para que pudéssemos falar a toda a hora. À noite confesso que caíram-me algumas lágrimas, mas por outro lado estava maravilhado com o que me estava a acontecer, era todo um mundo novo.

O seu irmão que já cá estava não jogava futebol, não tinha jeito?
Não, o meu irmão não ligava e nunca jogou futebol e se hoje em dia sabe alguma coisa sobre futebol, foi porque eu lhe ensinei (risos).

Vai jogar para Belém. E a escola, continua ou deixa os estudos?
Largo a escola quando entro no Belém. Ainda começo com as duas coisas, escola e futebol, mas nunca fui um grande aluno, ou melhor, era muito preguiçoso. Custou um bocado a adaptação à linguagem, o corrigir os erros, o sotaque, isso custou-me bastante, eu escrevia como falava, levei um tempo a entrar nos eixos. Por isso a escola para mim foi sempre com muito sacrifício. Foi sempre através de ameaças do meu pai: “Se não estudas, paras com o futebol”.

Sai da escola ainda no Belenenses.
Sim. Faltei muito, estive uma semana sem ir às aulas. Dizia ao meu pai que ia mas não ia às aulas, ficava no recreio a jogar .

Em que ano parou?
Fiquei com o 8.º ano. O meu pai encostou-me à parede e disse: “Meu amigo ou escola ou futebol, tens de escolher”. E acrescentou que se eu escolhesse o futebol teria que viver do futebol, porque dele não ia ter mais nada. O meu pai veio de um colégio, dos salesianos, tem uma mentalidade muito estreita. Teve uma educação muito rígida, o meu avô era uma pessoa importante em Moçambique. E ele avisou logo que se escolhesse o futebol teria que viver do futebol.
Já ganhava dinheiro do futebol?
Não, andava nos juniores. O meu treinador era o falecido Zé António, ele chamava-me “pérola negra” (risos). Comecei a ver o meu nível a subir, as pessoas a falarem e comecei a sonhar que podia chegar lá. Por isso quando o meu pai me encosta à parede, eu escolho o futebol. Só que eu não tinha noção do que tinha dito. A partir daí o meu pai não me comprou mais nada. Nem roupa, nada. Íamos às compras, ele comprava roupa para o meu irmão e para mim nada.

Custou-lhe.
Custou, mas agradeço-lhe porque isso deu-me uma força enorme para provar que conseguia. Toda a minha família é uma família académica. O meu pai tem curso de engenheiro mecânico, o meu avô, Armando Correia de Sá, era governador de uma província em Moçambique. Voltando um pouco atrás na minha história, naquela altura o meu pai casar com uma negra e ter um filho de uma negra era o caos. O meu pai ter assumido a minha mãe e os filhos foi um ato de coragem. Ele teve essa coragem. 

Como é que fazia para ter as suas coisas?
O Belenenses comprava o passe, mas eu agarrava no dinheiro e comprava coisas para mim.

Apanhava os transportes sem pagar?
Quando o pica vinha, eu saltava (risos), aquelas malandrices. Às vezes saía de casa duas horas antes porque sabia que para apanhar o autocarro para Belém, entre fugir do pica e apanhar outro autocarro e ter que esperar, tinha que fazer umas “engenhocas” até chegar ao treino (risos). Mas a vontade era tanta. Agarrava naquele dinheiro e comprava as coisas para mim. O meu pai nunca acreditou muito nisto do futebol e depois tinha o meu avô que dizia: “Larga lá isso do futebol e vai mas é trabalhar”. Eu tinha tudo contra, mas sempre fui de ideias fixas. Tenho um objectivo e custe o que custar eu vou lá. Houve uma altura em que chego ao treino a Belém e todos começam a dar-me os parabéns. “Parabéns, parabéns, parabéns” e eu “Mas parabéns, porquê?”; “Foste chamado à selecção nacional portuguesa”. Fui eu e o Marco Botelho. Eu nem queria acreditar.

Que idade tinha?
Acho que tinha 16, foi para o Campeonato do Mundo do Qatar. Cheguei a casa todo contente e disse ao meu pai, mas ele nem A nem B (risos). Fomos ao Jamor para treinar e encontro lá jogadores como o Nuno Gomes, o Peixe, o José Soares, o Dani, toda a geração do Qatar e eu fico no quarto com o Nuno Gomes que na altura jogava no Boavista. Eu estava nas nuvens. Um dia estávamos a treinar e o meu pai foi ver, mas estava escondido (risos). Apareceu lá de surpresa e acho que foi aí que ele acreditou que eu podia seguir o caminho de jogador. Os treinadores eram o Rui Caçador e o Nelo Vingada, e era muito complicado entrar naquela selecção, eram só jogadores do Benfica, do FCP e do Sporting, e eu e o Nuno Gomes ali no meio.

Foi praxado?
Fui. Tinha ficado no quarto com o Nuno e nós tínhamos horários para estar na camioneta, para ir para os treinos e eu adormeci. O gajo não me acordou (risos). Nem sei se ele se lembra dessa história. Foram todos para o autocarro e quando eu acordei com o telefone a tocar fui a correr e o pessoal todo a aplaudir o último gajo a chegar (risos). Na altura não achei piada nenhuma, mas foi engraçado. 

Chegou a estrear-se?
Fizemos um jogo amigável no Jamor, com uma equipa árabe. Só fiz esse jogo e não fui chamado na convocatória final.

Foi uma grande desilusão.
Foi porque os treinos que tinha feito tinham corrido muito bem. Mas sabia que ia ser complicado estar presente.

Porquê?
Porque naquela altura havia a política de FCP, Benfica e Sporting e era muito difícil ter um jogador de outro clube. Havia o Nuno Gomes que na altura era do Boavista e mais ninguém. Eu e o meu colega, o guarda-redes Botelho, não fomos chamados. Mas fiquei orgulhoso de ter participado.

E no Belenenses como correm as coisas?
Fui chamado entretanto aos seniores, tinha 18 anos. Cheguei ao balneário dos seniores a tremer por estar no meio dos gajos todos. Lembro-me que fui pedir massagens e eles, os mais velhos: “Ó amigo pára, pára. Tu com essa idade queres massagens” (risos). E o Maia que era o massagista fez-me uma massagem com tanta força, com o cotovelo, que saltei da marquesa e disse esquece lá isso (risos). Fui bem recebido nos seniores, fiz um treino espectacular e foi ali que o meu nome começou a surgir.

Aí já ganhava dinheiro?
Não. Ganhava o dinheiro do passe e havia um director no Belenenses, já não me lembro como é que se chamava, que às vezes nos dava algum dinheiro de bolso, algum dinheiro extra. Ele ajudava-nos imenso. Depois começo a treinar com os seniores e o falecido professor José António fala com o Carlos Janela, que era o director desportivo, para assinar contrato profissional comigo. Andaram ali a enrolar e nunca mais assinavam contrato comigo, eu insistia, mas não deu em nada. O Janela não foi muito amigo, podia ter facilitado mais e eu podia ter assinado com o Belém mas não aconteceu e entretanto sou chamado para cumprir o serviço militar.
Vai para onde e durante quanto tempo?
Vou para Tomar. Acaba a época da transição de júnior para sénior e ou ficava no Belém e assinava contrato profissional ou tinha que ir à procura de outro clube. Apareceu então um treinador, o Jesualdo, o que treina as camadas jovens do Sporting, que me convida para ir para o Vilafranquense. 

Isso ainda antes da tropa?
Sim, antes da tropa. Esperei que o Janela tomasse uma decisão mas como não aconteceu, decidi aceitar o convite e ir para o Vilafranquense para jogar a titular. Quando lá chego encontrei o Rui Vitória.

Qual foi a impressão com que ficou dele?
Ele era o capitão de equipa, era uma pessoa muito atinada. Era um líder por natureza no balneário. O primeiro contacto que tive com ele, ele até conta esta história a muita gente... Eu tinha vindo de Belém, habituado a equipamento da Adidas, a ter todas as condições de um clube acima da média e quando chego ali, vou equipar e dão uns saquinhos com um calção de pano, uma camisola sem marca. Olho para aquilo e faço um comentário qualquer e ele dá-me um raspanete: “Amigo esquece lá isso, esquece lá as coisas do Belém. A realidade aqui é diferente, se queres ser jogador de futebol, a realidade aqui é toda diferente.” Eu olhei e pensei, vou ter de adaptar-me a isto. E comecei a entrar noutro processo e a habituar-me às novas condições.

Nessa altura ainda vivia na casa do seu pai?
Sim.

Como é que fazia para ir aos treinos?
Ao princípio o treinador dava-me boleia, a mim e a outro miúdo. Depois tive um colega, o Rui Pedro que jogou nas camadas jovens do Sporting, que já conduzia e como vivíamos mais ou menos na mesma zona, ele vivia em Massamá e eu na Amadora, encontrávamo-nos no centro comercial da Babilónia e íamos para o treino. Era assim que me ia desenrascando.

Lembra-se do valor do primeiro ordenado?
Acho que eram uns cento e tal contos, para a altura até não era mau.

O que fez com esse primeiro ordenado?
Comprei botas e ténis de futebol para mim. Não era muito esperto porque com o pouco dinheiro que tinha andava a comprar coisas de marca (risos) e o dinheiro ia num instante.

Quando está no Vilafranquense é chamado para prestar serviço militar.
Sim. Vou para Tomar. E aí caiu-me tudo outra vez, porque acabou por atrasar o meu percurso. Já tinha atrasado em Belém, quando eu acreditava que ia continuar lá e não continuei. Depois vou para o Vilafranquense, fazemos uma boa época, tínhamos uma belíssima equipa e entretanto sou chamado para a tropa, voltou a cair-me tudo outra vez.

Quanto tempo é que esteve na tropa?
Seis meses. Três meses em Tomar e os outros três em Beja.

Custou-lhe muito? Que memórias é que tem do serviço militar?
Custava-me muito acordar de manhã. Nunca fui um gajo muito fácil para acordar e ouvir o sino a tocar às seis da manhã e ter que me despachar, fazer tudo muito rápido... Fazer a cama, vestir, comer em pouco tempo para estar na formatura, custou-me bastante. Apanhei alguns castigos. Lembro-me que uma vez em Beja, escapei do quartel à noite para ir ao concerto dos Black Company, que tinham lá ido actuar (risos).

Sozinho?
Eu e mais dois. Fomos ver o concerto e quando voltamos, saltamos o muro e fomos apanhados.

Qual foi o castigo?
Passei uma noite na “casa da rata” que é o sítio onde ficam os prisioneiros. Mas foi giro. O pessoal gostava de mim porque eu levava aquilo tudo na palhaçada. Sempre fui uma pessoa de rir, de brincar. O meu sargento de manhã é que me deu o castigo, depois de lhe contarem o que eu tinha feito. Meteu-me na cozinha a descascar batatas (risos), durante o fim de semana. Nunca descasquei tantas batas na minha vida (risos). E eles têm máquina para descascar mas ele proibiu-me de a usar. Tive que as descascar à mão. Foram para aí uns 15 kg de batatas.

Nunca apanhou um susto mais a sério?
Não. Sempre fui muito malandro, no bom sentido, sempre fui muito divertido. Uma vez estávamos a fazer um exercício em que simulavam o lançamento de granada e nós tínhamos que nos deitar no chão e rastejar. Em todas as fotos que eles tiraram eu estou em pé. Todos os meus colegas estão no chão, eu sou o único que me deito sempre tarde. Para me atirar para o chão, primeiro tinha que pôr o joelho, devagar (risos). Havia gajos que pareciam Rambos, que estavam na guerra e atiravam-se, eu ria-me.

Foram seis meses que esteve desaparecido do mundo futebol.
Sim, vinha jogar aos fins de semana mas não estava muito conectado com a equipa, não treinávamos juntos. Falhei muitos jogos, falhei jogos importantes. Penso que atrasou bastante a minha progressão, o meu crescimento como jogador. Entretanto eu tinha ouvido dizer que no norte havia mais oportunidades para ser jogador de futebol, porque havia mais olheiros, mais clubes. Como estava de férias, pensei que ou voltava para o Vilafranquense, pedia-lhes mais dinheiro, mas dificilmente eles conseguiam pagar, ou arriscava e ia para o norte fazer uns treinos de captação. Tinha um amigo que tinha carro, o meu pai também me incentivou para ir, para arriscar.
Foram para onde?
Fomos sem sentido, começamos a andar. Não tínhamos muito dinheiro, só tínhamos dinheiro para ir, não tínhamos para voltar (risos). Nem pensamos no regresso. Lá fomos. Paramos primeiro no Salgueiros, onde estava como treinador o Carlos Manuel. Eu tinha um amigo que tinha um primo que jogava no Salgueiros, o Vinha, e que me disse para eu ir falar com ele. O Vinha falou com o Carlos Manuel que nos pôs a treinar. Só que eu não tinha a noção de que aquilo era a I Divisão. Quando o treino acaba o Carlos Manuel vem ter comigo diz que já têm quase todas posições preenchidas, estava à procura de um jogador mais acima da média ou de um ponta de lança. Saí e continuei a minha caminhada. Fui para o Maia. Quando lá cheguei, a cidade é muito bonita, o clube também tinha umas instalações muito bonitas. Também não tinha noção de que o Maia era um clube de II divisão. Pedi para treinar, mas o treinador avisou logo que não havia espaço, não treinei e continuamos em direção a Viana do Castelo.

Iam pernoitando onde?
Dormia no carro, lavava-me no café, desenrascava-me (risos). Quando cheguei ao Viana, nem me deixaram treinar. Aí caiu-me tudo, vieram-me as lágrimas aos olhos. Vinha de tão longe e nem sequer me queriam ver treinar? A razão porque não treinei no Viana foi porque eu tinha vestida uma t-shirt que tinha escrito Kadoc (risos). Eles devem ter pensado que eu era um desbundeiro, um festeiro (risos). Acho que foi essa a razão.

Foi para onde a seguir?
Fiquei triste e desiludido. Vou para Famalicão e também não me deixam treinar. Eu e o meu amigo já estávamos muito desanimados mas resolvemos ir para Espanha para ver se conseguíamos ter alguma oportunidade. O dinheiro estava todo contado. Comíamos McDonalds e sandes. Vamos a caminho de Espanha, paramos num café em Bragança e vimos um papel que dizia: “Hoje às 15h captações de jogadores”. Vi que era para a III Divisão. Pensei, para isso tinha ficado no Vilafranquense que já está na II Divisão. Mas o meu amigo resolveu ir tentar. Quando chegamos ao Bragança, apareceu o director que veio ter connosco, o meu amigo disse que tinha ido por causa das captações e o director pergunta-me se eu também não ia. Olho para o meu amigo e digo-lhe: “Já não tomo banho há dois dias, treino”. O director pergunta-me em que posição é que jogo e eu “ponta de lança”. Estava tão pouco me lixando que disse-lhe aquilo. Íamos jogar contra uma equipa local. Havia muitos jogadores do Bragança, dava para fazer duas equipas. Ele faz a primeira equipa para jogar e eu fiquei de fora. Começa o jogo e no banco há uma grande confusão, eu ria-me. Estava a achar piada aquilo tudo porque não estava com intenções de ficar no Bragança. Não estava a levar aquilo a sério. O treinador faz a segunda equipa para entrar na segunda parte. Põe-me a ponta de lança. Faço golo, assistências, faço um belíssimo treino e eles adoraram-me. “Queremos que fiques cá”.

E ficou.
Comecei a pensar: "De Lisboa a Bragança são 10 horas, vou ficar aqui?!". Acabei por perguntar quanto pagavam. “250 contos com casa, alimentação, tudo”. Não está mal. Virei-me para eles e perguntei pelo meu amigo. “O teu amigo não fica, não podemos ter duas pessoas de Lisboa, senão é muita confusão”. Disse-lhes que só ficava se ele ficasse. “Não pode ser, mas fazemos uma coisa. Arranjamos um empresário para lhe arranjar outro clube”. “Perfeito, então arranjem um clube para ele que eu fico. Assinei contrato com eles, com o Bragança e pensei, agora vou a casa, vou buscar as minhas coisas e quando a época começar, volto. A época começava três semanas depois. O meu amigo foi com o empresário à procura de um clube para ele e eu apanhei o autocarro para vir para Lisboa. Aí tive a noção de que estava longe de casa, porque 10 horas de viagem de autocarro para Lisboa, com aquelas curvas todas... Quando cheguei a casa disse, eu não volto. Não queria voltar. Eles ligavam-me e eu dizia-lhes: “Para a semana”. Até que o meu pai: “Olha amigo, já assinaste contrato. Se não jogares lá, não jogas em lugar nenhum”. Agarrei nas minhas coisas e lá fui para Bragança. Cheguei no primeiro dia em que começava o campeonato, o primeiro jogo do campeonato. Nem fiz pré época nem nada. Eles ficaram todos contentes de eu finalmente ter chegado. Todos os fins de semana quando acabava o jogo ia para Lisboa. Detestava Bragança.

Jogava a ponta de lança?
Jogava a ponta de lança e era um ponta de lança temido, era terrível (risos). Mas ia para Lisboa todos os fins de semana e houve um dia em que volto de Lisboa, é inverno e é a primeira vez que tenho contacto com a neve. Neve! Vejo a cidade de Bragança toda branca, tudo branco. Nunca tinha visto neve na minha vida, só na televisão. Nunca tinha tocado em neve.

Estava com quantos anos?
Com 20. Entretanto por causa da neve, as estradas ficaram interditas e tive de passar o meu primeiro fim de semana em Bragança. E adorei. Era uma cidade universitária com muita vida e eu não tinha noção. A partir daí acho que só voltei a casa três anos depois (risos). Comecei a viver em Bragança, tinha casa, tinha tudo. Fiz um ano no Bragança e depois assinei contrato com o Vila Real.

Como é que foi passar da casa dos pais para viver sozinho?
Foi complicado porque eu não gosto de comer sozinho, nunca gostei, por isso quase sempre ia a restaurantes. Mas eu gostava da minha liberdade e tive sorte de ter grandes colegas. Sempre tive muita facilidade em fazer amigos. Acabei por me sentir bem.

Essa foi a altura em que começou a sair mais à noite?
Sim, comecei nas noitadas, mas tudo com regras. Eu era muito focado, tenho uma frase que uso muito: “Máxima liberdade, máxima responsabilidade”. Posso divertir-me, mas sei até que ponto posso ir, tenho limites, conheço-me.

Nunca teve problemas?
Não. Tive as minhas saídas, tive as minhas coisas, especialmente nos clubes onde tu és o mais novo e lidas com “macacos velhos”, já batidos, que te levam aqui e ali para beber isto e aquilo. Tens de entrar nesse jogo porque esse jogo faz com que os mais velhos te aceitam e ajudem. Não podes chegar lá e ficar no regime de “ai eu não bebo, não faço isto…”. Tens que entrar nesse mundo. Depois fui para o Vila Real, tenho uma história engraçada.

Conte.
Quando chego ao Vila Real faço uma época belíssima, volto à minha posição de lateral direito porque o treinador do Vila Real, o professor Victor Maçãs, já me conhecia das camadas jovens do Belém e sabia que eu era lateral direito. Um dia, num jogo contra o Boavista para a Taça de Portugal, faço uma exibição enorme e aparecem os grandes. Aparece o Rio Ave, aparece o V. Guimarães, aparece o Boavista, aparecem os clubes todos ali do norte.
Vai para o Rio Ave. Tinha empresário?
Foi nessa altura que comecei a ter, em Vila Real, o nome já me fugiu... Ele apareceu lá, eu precisava de alguém que tratasse dessas coisas para mim. O Vila Real tinha um presidente espectacular, que teve a infelicidade de ter um cancro no estômago. Foi na altura que os clubes andavam atrás de mim. Eu queria falar com ele mas ele estava doente e não podia. Os dirigentes do Vila Real começaram a pedir muito dinheiro e os clubes começaram a fugir. O meu empresário disse que a única hipótese era eu falar com o presidente. Vou a casa dele, bato à porta, a mulher dele vem abrir e digo-lhe que quero falar com o presidente porque achava que me estavam a “cortar as pernas” e diziam que o presidente já não mandava. Ela começou a dizer que ele estava muito doente, não podia falar com ninguém e fechou-me a porta. Eu fiquei lá fora, sentado nas escadas, à espera. Entretanto o presidente manda a mulher chamar-me. Entrei e ele tinha uma carta na mão onde tinha escrito: “O Armando é meu jogador, não pertence ao clube, e eu liberto-o, pode sair à vontade”. Era uma procuração. Fiquei feliz da vida. Fui ter com o meu empresário. Chego a acordo com o Rio Ave e assino por três anos, o treinador era o Carlos Brito.

Como foi o impacto de chegar à I divisão?
Ver aqueles jogadores totalmente diferentes, as técnicas e os treinos diferentes, aquele envolvimento... Na altura tinha um concorrente directo que era o Nenad, um jugoslavo que foi considerado por duas vezes o melhor lateral a jogar em Portugal. Ui estou feito, pensei, mas eu queria muito jogar e o Carlos Brito sempre que podia punha-me a jogar, fui ganhando o meu espaço. Entretanto recebo um convite da selecção de Moçambique.

E joga pela selecção de Moçambique.
Sim. Como só tinha feito um jogo amigável pela selecção nacional, podia. Tive uma conversa com o Carlos Brito: “Mister, tenho este convite da selecção de Moçambique. Estou a ser o jogador revelação do campeonato (e fui considerado o jogador revelação do campeonato português), o que é que eu faço?”. Ele responde: “Isso é uma decisão muito tua”. Eu sabia que se continuasse a jogar assim poderia saltar para um grande e ser chamado à selecção portuguesa, sabia que isso podia acontecer. Mas sabia também que para me afirmar na I divisão tinha que ser internacional, porque o meu concorrente era internacional jugoslavo. O que é que eu faço? Aceito ir à selecção de Moçambique? Aceito esse risco? Não tinha certezas por isso decidi aproveitar a oportunidade. E tenho que agradecer à selecção de Moçambique.

Revê a sua mãe pela primeira vez?
Sim. Tinha saído de Moçambique com 11 anos e aos 21 volto a ver a minha mãe.

Foi uma emoção enorme.
Foi incrível. Ainda me lembro das primeiras frases que ela me disse, depois de me abraçar. “Filho despe-te lá quero ver como estás, como tu cresceste” (risos). Foi giro. Vou à selecção de Moçambique, jogo contra os Camarões na minha estreia, e quando volto começo a ser titular indiscutível no Rio Ave. Tinha estatuto internacional e era jovem, era promissor, tinha uma margem de progressão grande e o Carlos Brito começou a apostar em mim a 100%. Sou jogador revelação do campeonato.

Nessa altura vivia a onde?
Em Vila do Conde. Foi onde conheci a minha ex-mulher, Tânia, mãe da minha filha.

Tânia, filha do Augusto Inácio.
É, mas eu não gosto muito de tocar nesses assuntos mais pessoais.

Porquê?
Isso foi um trauma que tive porque muitas pessoas começaram a deixar de olhar para o meu valor e passaram a olhar-me como o genro do Inácio. Tive até uma situação no Rio Ave. Íamos jogar contra o Sporting, eu por acaso lesionei-me, e disseram logo que eu não queria jogar porque era contra o Sporting, contra o meu sogro. Não gostei nada, as pessoas levaram isso para um mau caminho e tive de lidar muito com isso. Fiquei bastante desiludido com as pessoas porque não viam o meu valor, não viam toda a caminhada, todo o esforço que eu fiz.

Conheceram-se por acaso?
Sim, embora na vida nada é por acaso (risos). A história foi esta. Saí à noite porque apesar de haver jogo no dia seguinte, eu estava castigado, não podia jogar e então resolvi ir a um barzito. Quando cheguei vi uma miúda, era a Tânia, que nunca visto. Ela estava lá com a mãe. Olhei, houve aquela troca de olhares, eu muito longe de saber quem ela era. No dia seguinte o jogo era Rio Ave–Marítimo, e o Inácio era treinador do Marítimo. Estaciono o carro para ir ver o jogo e quem é que eu vejo? A Tânia de novo, no campo, com a mãe para irem assistir ao jogo. Entretanto no intervalo do jogo cruzámo-nos, trocamos olhares novamente, mas ela não me disse quem era e eu pensei que ela se calhar vinha viver para Vila do Conde, devia gostar de futebol… E que devia saber quem sou eu. Quando nos cruzamos, falamos, trocamos números de telefone. Um dia combinamos ir ao cinema. Passados uns dois meses ela disse-me: “Já conheces a minha mãe, queres ir a minha casa conhecer o meu pai?”. Para mim não havia problema. A mãe dela convidou-me para ir jantar lá a casa. Na altura o Inácio acho que vivia na Madeira porque era treinador do Marítimo, mas no fim de semana em que elas me convidaram ele vinha a casa.

Nessa altura ainda não sabia que ele era o pai da Tânia?
Não. Estou na sala e aparece-me o treinador do Marítimo e eu, espera lá, o que é que se está a passar aqui?. “Ah, é o meu pai”. Pensei logo, “Já fui, agora já fui”. Comemos, rimos, conversamos, é uma pessoa espetacular. Fui bem recebido. Foram apoiando a minha caminhada e fui vivendo no norte. Depois do Rio Ave fui para o Sp. Braga

Quem era o treinador?
O Manuel Cajuda.

E que tal?
Gostei. Um treinador à moda antiga, na forma de lidar, mas eu gostei. Entende de futebol, trabalha muito com a mente dos jogadores e gostei. Encontrei lá o Tiago, o Ricardo Rocha e fizemos uma belíssima época.

Mudou-se para Braga?
Não, mudei-me para a Maia, comprei lá um apartamento. Entretanto em Braga fazemos uma época espectacular... Mas antes disso, ainda no Rio Ave, tenho outra história.

Força.
Vou jogar ao Sporting. E quem era o treinador do Sporting? O Inácio. O director desportivo do Sporting, Luís Duque, disse: “Gosto muito deste lateral direito”. E o Inácio vira-se para ele, “Temos que falar” (risos). O Sporting estava interessado em mim mas quando ele disse “este miúdo é meu genro”, as coisas não avançaram. Infelizmente em termos de futebol, temos uma mentalidade muito fechada, porque o Michel Salgado do Real Madrid é casado ou foi casado com a filha do presidente do clube e há muitos jogadores por aí nas mesmas circunstâncias.

Sente que foi prejudicado por ser genro de Inácio?
Sim. Mas percebo que o Inácio é uma pessoa conhecida, uma pessoa com alguma polémica, não é uma pessoa que atraía muitas amizades porque ele não tem papas na língua e já se sabe como é a vida, queres perder amigos, diz a verdade (risos). Estava a dizer que houve interesse do Sporting. Sim, mas acabei por levar por tabela. Só para ter uma noção. Se for à Wikipédia de algum jogador não vê nenhuma indicação de que o jogador é genro deste ou daquele. Mas se vai à minha procura, diz lá que sou genro do Inácio, não faz sentido nenhum. Isso não acrescenta nada na minha carreira. 

Já vivia com a Tânia, já tinham casado?
Vivíamos juntos em Braga. Fiz uma belíssima época e surge o convite do Benfica. Quando fui para Braga troquei de empresário, passou a ser o José Veiga. Quando apareceu o interesse do Benfica, falamos sobre o contrato, que seria de quatro anos, e ele diz-me: “Segunda-feira ligo-te para assinarmos o contrato”. Passou segunda, terça, e nada. Não houve contrato nenhum com o Benfica porque na altura o director desportivo trouxe outro lateral direito e fiquei para trás nessa primeira oportunidade de ir para o Benfica. Continuei no Braga e a meio da época um dia chego ao treino e “parabéns, parabéns pá, Benfica, Benfica” e eu nem aí. Pensei, nem me vou iludir muito. Há entretanto uma reunião entre o José Veiga, o presidente do Sporting de Braga e o Alexandre Pinto da Costa que também trabalhava com o Veiga e chegam a um acordo. Eu e o Tiago íamos para o Benfica. Mas antes disso falei com a Tânia e disse-lhe “Vamos casar antes de ir para Lisboa”. E casamos.
Quando chegou ao Benfica o treinador era o Jesualdo Ferreira. O que achou dele?
Não tenho muitas razões de queixa do Jesualdo, o que acontece é que quando chego ao Benfica o clube não estava organizado. Era um Benfica muito confuso, o balneário não era um balneário unido. Os jogadores equipavam-se de costas uns para os outros, quase ninguém falava com ninguém. Eu vinha do norte e estava habituado a uma outra camaradagem e espírito de grupo... Eu e o Tiago até olhamos um para o outro, ui isto aqui, o pau ferve. A pouco e pouco começamos a entrar na equipa, nós chegamos em dezembro.

Notou muita diferença para o Sp. Braga, ao nível da dimensão do clube e do futebol?
A dimensão do Benfica é enorme, a qualidade, a imprensa, tudo isso. Lidar com a imprensa, lidar com os jornais, com a pressão do próprio clube, um clube histórico, que é preciso dignificar da melhor maneira, não é fácil. Mas a pouco e pouco fui lidando, fui vendo. Às vezes para se jogar num grande, o talento só não chega. Estás num clube grande e tens de ter outra atitude, há outros interesses por trás que tu não controlas, e que por vezes fazem com que não tenhas o mesmo rendimento que tens noutros clubes. Depende de onde é que tu vens, de como tu chegas. Infelizmente em Portugal, um jogador que vinha do Braga não tinha tanto valor como um jogador que vinha de uma equipa secundária de Itália, um estrangeiro tem mais valor do que um português.

É nessa altura que Luís Filipe Vieira assume o comando do Benfica não é?
Sim. Na altura o Camacho assume o comando e começa a limpar o balneário. Acho que foi aí, com a entrada do Vieira e do Camacho, o ponto chave para que o Benfica começasse a ter este rumo que mantém até agora. Para mim foi uma questão de adaptação, de ver como se anda e onde se pisa no Benfica.

Sempre foi benfiquista?
Eu sempre fui fã do Belenenses (risos). Foi lá que fui criado, que fiz a minha formação.

Dessas três épocas no Benfica, quais as melhores e piores recordações?
A melhor foi ganhar uma Taça de Portugal, que o Benfica não ganhava há oito anos. Só ter assinado pelo Benfica, um dos grandes, era um objectivo. Repare, eu saí de Lisboa à procura de uma oportunidade.

E regressa a Lisboa a um clube grande.
Lembro-me que quando joguei pela primeira vez contra o Belenenses, onde tinha estado nas camadas jovens, foi uma sensação estranha. O mau momento foi o falecido Fehér. Ele cai à à minha frente. Foi um choque.

Percebeu logo que era grave?
Não. No princípio não pensei que fosse grave. Estávamos a ganhar 1-0, faltava uns minutos para acabar o jogo, ele dá aquele sorriso que todo o mundo vê, antes de cair. Não tive logo a noção de que as coisas estavam más. Foi um momento muito marcante, muito triste. Foi o pior momento que tive. 

De todos os treinadores que teve no Benfica, qual foi o que mais o marcou?
O Jesualdo porque foi ele que me escolheu, que foi buscar-me e por ser um amigo. O Camacho, pela sinceridade e por dar valor a todos os jogadores. Nos momentos em que estive menos bem e não jogava, mesmo assim sentia-me valorizado, tanto que foi ele que me indicou para ir para Espanha.

Jogar lá fora era uma ambição?
O meu objectivo primeiro era afirmar-me como titular no Benfica. Cheguei em dezembro, fiz uma boa segunda volta, chamavam-me o “comboio da Luz”. Fui escolhido mais do que uma vez para o melhor 11 da Europa. Depois no segundo ano tive uma recaída...

Recaída de quê?
Em termos físicos, não consegui estar ao nível do ano anterior.

Porquê?
Penso que foi devido à pré-época. Eu vinha do SC. Braga e estava habituado a grandes pré épocas, muito bem planeadas, muito bem trabalhadas. Sempre fui um jogador de velocidade, de muito poder e de muita força, mas para isso tem que se trabalhar e eu vinha habituado a essas grandes pré épocas e chegava numa forma sempre espectacular aos jogos. E a minha primeira pré época no Benfica é totalmente diferente. É uma pré época muito mais suave. Não digo que foi má, mas foi muito diferente do que o meu corpo estava habituado. Havia jogadores de outro nível que não precisavam de trabalhar. Há jogadores que precisam de trabalhar para render, outros não tanto. Eu precisava trabalhar a parte física para render, ainda por cima na minha posição que é de vai e vem, e tive alguma dificuldade em me adaptar. Mas aos poucos comecei a ganhar o meu espaço. Depois havia o Miguel, outra aposta a lateral direito e que marcou um pouco a diferença porque quando eu estava a tentar afirmar-me, a entrar na forma normal, o Jesualdo é despedido e entra o Chalana para fazer um jogo contra o SC Braga. O Chalana está indeciso se joga com quatro ou três defesas. Se fosse com quatro, jogava eu na direita, o Ricardo Rocha, o Argel e mais um lateral esquerdo que já não me lembro quem era. Se jogava com três centrais, jogava o Ricardo Rocha, o Argel e o João Manuel Pinto, com o Miguel a fazer o corredor e o Simão a fazer o outro corredor. E ele optou por esta última hipótese. O Miguel que estava na lista de dispensas, fez um belíssimo jogo, um jogo enorme e agarrou o Camacho que está na bancada a ver o jogo e mete o Miguel a lateral direito e ele faz uma época espectacular.

Ficou como segunda opção.
Sim, mas continuava a trabalhar sempre da mesma maneira, sempre a dar o meu máximo. Muitas vezes até dei umas dicas ao Miguel que era mais ofensivo, fecha aqui, fecha acolá, tínhamos uma boa relação. Entretanto continuo a trabalhar e começo a jogar a lateral direito e o Miguel a extremo direito, ou eu à esquerda e o Miguel à direita nas competições europeias, porque o Fyssas não podia jogar. Começo a ganhar o meu espaço de tal maneira que vamos a Milão jogar contra o Inter, nos quartos de final, faço um jogo fantástico e surge o interesse dos clubes europeus. Clubes franceses, de Espanha, de tal maneira que o Benfica nem acreditava que havia clubes interessados em mim (risos).
É o Camacho quem lhe aconselha o Villarreal?
É. Quando o Camacho sai do Benfica, disse-me que o Villarreal andava à procura de um lateral direito, porque o Belleti entretanto vai para o Barcelona. O Camacho dá indicações ao Villarreal que vê alguns jogos meus. O Saint-Étienne, de França, também faz uma proposta, mas a proposta do Villarreal foi mais objectiva, vieram a Portugal e eu assino pelo Villarreal.

Vai para Espanha sozinho?
Vou com a minha mulher, sempre com a família. A minha filha nasceu no meu último ano no Benfica, em 2003. Estou na pré época quando a Tânia entra em trabalho de parto.

Assistiu ao nascimento?
Parei a pré época, pedi ao Camacho para que pudesse ir ver a menina, a Rafaela. O Camacho libertou-me. “Vai, mas volta depressa que a menina precisa de comer” foram as palavras dele (risos), como quem diz, tens que vir trabalhar para ganhar dinheiro para ela. Estávamos em Espanha, em Jerez, peço ao Benfica que me arranje os voos e vou directo para o hospital, mas já não consegui assistir ao nascimento da Rafa, cheguei um pouco atrasado, foi por pouco.

Que tal a sensação de ser pai?
No momento em que lhe peguei, ela chorava, chorava, chorava. Senti-me impotente porque não sabia o que podia fazer. Nabia o que ela tinha, se era dor, fome, não entendia muito bem (risos). Mas foi um orgulho enorme, senti-me realizado.

Como foi a adaptação da família a Espanha?
Villarreal é uma cidade pequena. É um “povo” como eles chamavam, tem um ambiente familiar. Fui encontrar craques, jogadores de outro nível. O Riquelme, o Forlán , o Marcos Senna, o Pepe Reina. Eu também vinha com um estatuto, vinha do Benfica, mas era outra realidade, outro futebol. O Villarreal tratou de tudo, perguntaram se eu queria viver num apartamento ou numa casa, num sítio calmo ou mais mexido, deram-me todas as opções possíveis e quando tinha tudo organizado, mandei vir a família. Eu adaptei-me mais rápido, ela não se adaptou tão bem.

Porquê?
Porque lidar com mulheres espanholas não é fácil, é outro mundo. Custou-lhe um pouca essa adaptação, mas depois as coisas começaram a correr naturalmente. A minha filha entretanto teve um problema num olho. Um terçolho que criou um problema nas pestanas e a Tânia andava à procura de um médico para ver o que era aquilo, ninguém dizia nada, ainda andei por Barcelona e depois foi operada em Coimbra. Mas ficou tudo bem. Mas foi uma fase que não foi muito agradável.
Nessa altura a sua mulher vem para Portugal e o Armando ficou lá?
Sim eu fiquei lá e ela voltou. E depois as questões relacionadas com o pós parto e todas as preocupações, acabamos por pôr fim à nossa relação. Mas continuamos grandes amigos, à semelhança do que se passa com os meus pais. Falamos, sempre a pensar no bem da menina, não temos problemas nenhuns. Vejo muitos casais a discutir, uma semana comigo a outra contigo, agora vai, agora já não vai... Fazem de uma criança um envelope, um paquete. Nós nesse aspecto temos sido grandes pais. Ela acabou por ficar em Portugal porque depois do Villarreal fui para o Espanyol. 

Vai emprestado?
Vou, tinha vários clubes interessados, tinha o Hamburgo da Alemanha também, começaram a aparecer vários contactos, mas o Camacho diz-me para ir para o Espanyol que ele ia ser treinador do Espanyol. Era para ser emprestado, coisas do futebol que são difíceis de explicar. Numa altura, ainda no Villarreal, fomos jogar à Holanda, contra o AZ Alkmaar, o meu treinador era o Pelegrinni. Fomos jogar as meias finais de uma Taça UEFA. E o treinador diz-me assim no balneário “Olha pá, temos que atacar por este flanco, pelo flanco esquerdo, porque o lateral direito do AZ Alkmaar é um dos pontos mais fracos desta equipa”, aquelas estratégias de treinador. O jogador do AZ, chamava-se Kromkamp. Fizemos um bom jogo, empatamos, mas fomos eliminados, não fomos às meias finais da taça UEFA.não conseguimos ir. Entretanto na época seguinte quem é que eu vejo no plantel? O tal lateral direito da equipa holandesa. Ele chega ao pé de mim e diz-me “Armando ouve lá, não sei porque é que me contrataram contigo aqui”. E começo a pensar, porque é que contrataram um lateral direito se eu estou cá? Começo a sentir-me um pouco desconfortável. Entretanto o FCP também quer contratar-me.

Explique lá isso.
Porque o treinador holandês do Az, Co Adreense, entretanto vai para o FCP. Ele conhecia-me. Houve ali um interesse mas não foi mais do que isso. E o Camacho liga-me a dizer que vai ser treinador do Espanyol. O Villarreal já tinha este novo lateral direito, depois também há questões que têm a ver com negócios e com a idade, eu cheguei a Espanha com 27, 28 anos e no mercado a idade conta. O Villarreal decide negociar-me ou emprestar-me. Havia clubes interessados e eu tinha assinado com o Paulo Barbosa quando fui para o Villarreal, mas ele andava muito distraído e não levou o meu caso a sério. Depois acho que também teve problemas no Benfica. Ficou uma situação um pouco estranha e quando o Camacho me liga a dizer para eu ir para o Espanyol, decido ir. O Villarreal queria emprestar-me, só que eu disse-lhes que empréstimo não. Ou ia definitivamente ou não. Ai o Villarreal falou com o Espanyol e fui transferido.

Como é que correu essa época no Espanyol e como foi a adaptação a Barcelona?
Gostei. Barcelona, é uma cidade bonita, fantástica, traiçoeira...

Traiçoeira porquê?
Porque tem muita vida. Tu às vezes vais jantar a um restaurante às 7, 8 ou às 9, acabas de jantar e quando olhas já é uma da manhã. É complicado.

Teve alguns problemas no clube?
Não, não tive problemas, mas é uma cidade em que se não te sabes controlar, podes perder-te. Digo isto porque um jogador de futebol acaba por ter o mundo a seus pés. Quando chegas a um nível, a um certo patamar, tens muitas ofertas. Por isso tens que saber ter um limite.

Conseguiu cuidar-se?
Tentei ao máximo (risos). O Barcelona do Rijkaard treinava à noite, não treinava de manhã, porque ele já sabia entre aspas que não era fácil aos jogadores treinar de manhã. Barcelona é realmente traiçoeira.

É uma cidade muito apelativa, com muitas tentações...
Não é fácil. Mas as coisas foram andando.

Aprendeu a falar catalão?
Não, não tanto. O pessoal fala de Barcelona, mas quem viveu em Barcelona e seja estrangeiro sabe que não é um processo fácil porque eles são muito fechados. Por exemplo para as entrevistas, só chamam quem fala catalão. Especialmente no Espanyol que é um clube abaixo do Barcelona. Não é fácil lidar e eles preferem jogadores catalães. Não é fácil entrar no envolvimento deles, no grupo deles.
Voltou a casar?
Não. Tive namoradas, mas não voltei a casar.

Entretanto sai de Espanha para Inglaterra.
Estive dois anos no Espanyol, apanhei o treinador Valverde, que é o actual treinador do Barcelona. Quando ele chegou já tinha feito a equipa que ele queria, e eu não estava nos seus planos. Decidi procurar outros rumos. Tive proposta para ir para a Rússia e para ir para outros lados, até para voltar a Portugal, mas começava a fascinar-me a ida para Inglaterra. Já tinha jogado em Portugal, em Espanha, porque não em Inglaterra? Queria experimentar. Estava com 30 anos e já não podia ter muitos mais vôos. Decidi mover-me para o Leeds.

Gostou?
O Leeds é um grande clube, não estava à espera. É um dos clubes mais antigos de Inglaterra. Tem umas condições fantásticas. O centro de estágios é brutal. Gostei muito e acabei por encontrar alguns ex jogadores, o Tore André Flo que jogou no Chelsea, o meu treinador, o Dennis Wise. Mas quando cheguei a Inglaterra ia sem ritmo de jogo, tinha estado quase meia época sem jogar no Espanyol quando chegou o Valverde. Todos sabemos que o futebol inglês é puxado, é super agressivo, quando lá chego em dezembro faço os primeiros jogos, entro bem na equipa mas depois comecei a ressentir-me em termos físicos. Comecei a ter algumas lesões musculares e comecei a não conseguir acompanhar o ritmo. Fisicamente não estava preparado.

Como é que foi a adaptação aos ingleses e à cidade?
No primeiro dia perguntaram-me se eu falava inglês, disse-lhes que sim. Quando chego à conferência de imprensa, aquilo não era inglês, aquilo era british. Não entendi nada (risos). Começaram a fazer-me perguntas e eu “Desculpa?!” (risos). Mas depois comecei a ir ao cinema, também via muitos filmes em casa, sem tradução claro, e comecei a entrar na forma deles falarem.

Foi bem recebido?
Muito bem. Tive apoio, até tinha uma música que eles cantavam no estádio. Os gajos são muito apaixonados por futebol. Gostaria de ter jogado lá mais tempo, de ter feito uma carreira em Inglaterra. Dentro do campo tens que dar tudo, fora do campo eles nem querem saber quem tu és. Não se metem muita na tua vida. Lembro-me que saia, ia a pubs, ao shopping, ia passear e eles não estavam nem aí. Dentro do campo eras um ídolo. As coisas foram correndo mas o Leeds não era um clube estável. Entravam e saíam muitos jogadores. Ainda lá apanhei um jogador angolano, o Rui Marques, penso que jogou nas camadas jovens do Benfica. Estive com ele e foi uma ajuda enorme na minha adaptação. Quando acaba a época, recebo um convite do Irão, e do Málaga de Espanha, mas ainda faltava um ano de contrato.

Porque é que opta pelo Irão?
Primeiro pela idade. Já estava com 31 e fazer mais três anos num país árabe, em termos financeiros ia ser muito melhor. E também porque na altura o Inácio estava lá a treinar o Irão e desafiou-me. Decidi arriscar, o contrato era muito melhor do que o do Málaga.
Qual foi o maior choque no Irão?
Começou logo na chegada ao aeroporto. Eu estava na fila para o controle dos passaportes e toda a gente a olhar para mim. Eu com um estilo totalmente diferente, com calças descaídas, descontraído e eles olhavam para mim. Até que chegou um gajo ao pé de mim e pergunta-me se eu vou para o wrestling (risos). Disse-lhe que era jogador de futebol e foi logo outra abertura. Quando se fala em futebol, as coisas parece que mudam. Ele mudou completamente a atitude comigo. Depois apanhei outro avião e fui para a cidade onde ia jogar. Quando vou no avião e olho lá para baixo, vejo os poços de petróleo a arderem, vejo deserto, quando estou quase a chegar à cidade para onde vou, pensei, “Mas para onde é que eu vim parar?!”. Quando saí do avião estava um calor enorme, uns 55 graus e havia muita poluição, do petróleo. Fui para uma cidade que era perto do Iraque, onde os prédios estavam todos furados com balas. Foi um choque. Era ainda resultado da guerra Irão Iraque, muitos prédios na fronteira foram atingidos. Quando cheguei meteram-me num hotel. Estranhei a comida, estranhei o calor.

O que é que estranhou na comida?
Os temperos, era totalmente diferente ao que estava habituado. Entretanto no meu primeiro dia de treino, estavam lá dois brasileiros, o Sandro Gaúcho e o Fábio, que jogaram em Portugal, juntamo-nos os três a falar e quando chegou o dia do jogo vejo milhares e milhares de pessoas no campo. É uma loucura, o futebol é uma paixão enorme. Custou-me um pouco a adaptação ao calor. Jogavam às duas da tarde com um bafo enorme, um calor enorme. Uma vez, estava a decorrer o Ramadão, ninguém podia beber água, eu estava no campo, queria água e agarrei numa garrafa, quando ia beber eles começaram “Armando no, no, no”, parecia um filme. Para eles era um desrespeito para as pessoas que estavam no Ramadão. Tive que sair a meio do jogo para ir à casa de banho beber água, depois voltei (risos). Mas não me arrependo nada de ter ido.

Entretanto muda de clube.
Sim, saio porque houve uma história não muito agradável. Não sei se era inveja, eles sabem que tinha sido genro do Inácio, apesar de já não ser quand ele me levou para lá. Disse-lhes “Vocês acham que eu vim para aqui porque sou genro ou pelo meu currículo? Vejam o meu currículo”. Como o Inácio também teve lá uns problemas, decidiu rescindir o contrato e eu também decidi ir embora. Não havia um bom clima. Entretanto sou contratado pelo melhor clube do Irão que é o Sepahan e acabei por ficar três anos no Irão.

O futebol é muito diferente?
Em termos tácticos nós somos muito melhores, somos mais organizados. Eles não têm uma cultura táctica, falham muito e isso faz a diferença.

Qual foi a história mais incrível que viveu no Irão?
Tive histórias engraçadas e tive histórias tristes. Quando fui para o Sepahan, eles tinham uma mania, matavam um cabrito, metiam o sangue no chão e nós tínhamos de pisar para dar sorte. Eu que sempre fui menino de ter os meus sapatinhos todos direitinhos e bonitos, as minhas botas tinham que estar sempre limpas, ter que pisar o sangue... Eles riam-se e gozam comigo, mas eu tinha que pisar o sangue para poder entrar no campo. Matar um cabrito era sinal de sorte.
Faziam isso em alguma ocasião especial?
Quando havia jogos importantes em que precisávamos de ganhar. O meu forte no meio destas histórias todas é que sempre soube adaptar-me aonde estava. Eu não posso ir para um país e tentar mudar as coisas para a minha maneira. Não, tenho que ser eu a adaptar-me. Tenho outra história… 

Conte.
Estou em casa a ver televisão, a televisão lá só tem quatro canais. Tem futebol, tem os heróis de guerra a falarem, tem as notícias que são cortadas, os filmes de karaté e do Jackie Chan onde não há beijos, não há nada, e a igreja com as rezas. Eu com os contactos que fui criando por lá arranjei uma box internacional, através de satélite. Um dia estou a ver o canal brasileiro Record, que só dá desgraças, e nas notícias dizem “Em quatro dias os Estados Unidos atacam o Irão”. Imagine eu sentado no sofá a ouvir as notícias. Agarrei no telefone, liguei para todo o mundo, comecei a entrar em stress e só pensava que tinha de ir embora. O pior disto tudo é que quando assinas com um clube destes, eles ficam-te com o passaporte. Acabei por fazer um escândalo no dia seguinte quando cheguei ao treino. “Vocês não viram as notícias?” e eles “No problem, no problem”. Nem tinham noção do que se estava a passar. Eu em stress e eles “No problem” (risos). Mas há mais.

Força.
Vou no carro e vejo um trânsito enorme, de repente ouço tiros e vejo as pessoas todas a correr em sentido contrário. Larguei o carro e comecei a correr também. Deixei o carro no meio da estrada e comecei a correr (risos). Quando cheguei ao clube e comecei a contar eles não estavam nem aí. Aquilo para eles é normal (risos). Tenho outra história, tive um acidente de carro. Ia numa rua estreita e vinha um gajo, que já devia vir com os copos, não trava e bate-me. Sai do carro e começa a discutir comigo e eu não entendia nada do que ele estava a dizer. Mas estava com um amigo de lá que começa a discutir com ele, de repente alguém chama a polícia. Quando a polícia chega o gajo foge porque sabia que estava com álcool. Os dois polícias que vinham de mota querem multar-me, entretanto um deles olha para mim e “Armando?!” e eu “Yes” e o gajo “Picture, picture, picture” (risos). Eu a querer contar o meu problema, o que é que se tinha passado, o outro gajo tinha-me partido o carro, e o polícia tranquilo só queria tirar fotografias. No final ainda me disseram “Se tu vais fazer queixa contra esses gajos, os iranianos vão voltar-se contra ti porque estás a fazer queixa de uma pessoa do país e tu és um estrangeiro. És uma pessoa conhecida mas és um estrangeiro.

Acaba o segunda época no Sepahan. Como é que decide que estava na altura de pendurar as botas? Foi difícil?
Na minha adaptação no Irão, pouco a pouco vou-me apercebendo de que as coisas estão a acabar.
Já tinha uma ideia do que queria fazer no futuro?
Eu já tinha uma queda para treinar, uma vez no balneário, durante uma palestra os meus colegas pediram-me para dizer o que pensava e eu fui para a frente e comecei a falar. Disse que o problema é que éramos uma equipa muito ofensiva, mas depois perdíamos o balanço. Pressionávamos durante o jogo todo e depois acabávamos por sofrer um golo estúpido porque não estávamos bem organizados no campo. Expliquei isso aos gajos e ao treinador.

Quando regressa a Portugal, o que vem fazer, vai viver para onde?
Já tinha a minha casa. Acabei por organizar a minha vida em Telheiras. Chego a Lisboa, o verão passou-se bem, são as férias, mas quando chega a altura de supostamente voltar a jogar, ai é que percebi que tinha acabado mesmo. Pensei que se calhar ainda podia tentar fazer uma perninha aqui em Portugal. Falei com alguns empresários, com algumas pessoas para ver se voltava, mas voltando ao princípio da história, sempre fui carimbado de ser quem sou (genro de Inácio) e muitas portas fechavam-se. Como não queria continuar assim, ainda ponderei voltar para o Irão, mas depois pensei que era muito pesado. Apesar de ter tido sorte porque no Sepahan estava a meia hora do Dubai e conseguia lá ir e mexer-me mais ou menos naquele ambiente deles.

Porque veio embora do Irão?
Eles queriam que eu assinasse por mais anos mas eu não queria assinar. Então entraram numa guerra comigo e não me pagavam. Zanguei-me e cheguei a um ponto em que me cansei e fui embora, depois de termos sido campeões. Voltei para Portugal e entrei com um processo na FIFA e lá consegui que me pagassem.
Estava a contar que depois cá as portas se fecharam. O que resolveu fazer?
Eu já tinha um ginásio no Casal de São Brás com o meu pai e com mais um familiar do meu pai e comecei a tomar conta das coisas, a ver o mercado. Depois surgiu a oportunidade de abrir uma academia em Telheiras.

Academia de futebol?
Sim. Andei por ali, era coordenador da academia, ensinava e comecei a fazer os meus cursos. Fui para Inglaterra fazer os meus cursos.

A academia ainda existe?
Deve existir mas não no meu nome.

Desistiu da academia porquê?
Era uma parceria e o outro sócio era maioritário. A academia não era minha, mas eu era o coordenador, dava a cara, era a imagem e tinha parceria com o dono que montou a academia. Ele começou a ver que o meu nome estava a ter uma projecção grande, o que eu acho que até era bom em termos de publicidade, mas em termos de ego ele não estava a saber lidar com isso. Ele queria dizer “Isto é meu”.
Começou a tirar os seus cursos...
Sim, a tentar aprender. Fazia projectos. Fui a Moçambique como embaixador das crianças, apoiando associações, fui andando e fui vendo o mercado. Depois vim e comecei a tirar os cursos de treinador. Tirei em Moçambique o curso da CAF, tirei também o da UEFA e agora no Canadá tirei todos os níveis.

Pelo meio treinou uma selecção de futsal de diabéticos não foi?
Abracei alguns projectos quando deixei de jogar. Apareceu-me esse dos diabéticos, através de um miúdo que é o Bernardo. Fizemos uma selecção, eles pediram para eu os treinar e fomos à Croácia. Foi um momento muito giro, lidar com miúdos, com pessoas que são diabéticas.

Tinha que ter alguns cuidados especiais?
O importante é conheceres o teu corpo. No desporto tu aprendes qual é o teu limite, onde é que podes e onde é que não podes exagerar. E foi o que eu lhes disse, têm que saber qual é o vosso limite, quando o vosso corpo pede açúcar, ou água, etc..
Como e quando surge a hipótese de ir treinar o Kleinburg Nobleton do Canadá?
Há cinco anos, através de um amigo holandês.

Está a gostar da experiência?
Estou a aprender bastante a lidar com jogadores. Isto aqui ainda tem muito que crescer, ainda é um bocado amador. Eu também tenho crescido bastante. Tenho tirado os meus cursos e tenho evoluído como treinador e aqui há muito para dar. Está a entrar numa fase positiva, vai haver uma Liga Profissional, que começa em Abril. Uma liga nova e são umas portas que se podem abrir. Como eu digo, quem viveu no Irão três anos, vive em qualquer lado (risos)."

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