"Há algo de muito errado com a selecção nacional e receio que nos próximos tempos as coisas não melhorem. Pior, receio é que melhorem. E melhorem tanto que depois só possam piorar muito. Semanas atrás, vencemos a Itália. Vós, petizes de dez anos que ledes esta página para vossa ilustração e cultura, pensais que ganhar à Itália é coisa de somenos? Pois ficai a saber que já não lhe ganhávamos um jogo oficial desde o tempo em que os vossos bisavós eram governados por um senhor oriundo de Santa Comba Dão. Foi em 1957, data que vos deverá soar tão remota como Idade Média ou Era Paleolítica.
Agora fomos à Polónia e, sem agonias e luso-dramatismos, viemos de lá com uma daquelas vitórias limpas e profissionais, sem grande dispêndio de energias e emoções supérfluas, que nos habituámos a associar a selecções insensíveis perante o sofrimento alheio como a Alemanha e… a Alemanha. Longe vão os tempos em que uma vitória assim era arrancada a ferros e festejada com lágrimas e, no dia seguinte, os jornais desportivos embarcavam naquelas orgias de V Império com brados de “Épico!” ou “Heróis!” e toda a sorte de exageros que nos levavam a comprar o jornal na esperança de encontrar nas páginas interiores hexâmetros dactílicos a louvar os nossos jogadores de belas cnémides como se fossem Aqueus a incendiar Tróia. Agora, ganhamos à Polónia, marcamos três golos fora e o país discute Azeredo Lopes. Será isto aquilo a que chamamos civilização? É este o preço a pagar pela superioridade futebolística, o de termos de renunciar à hipérbole, à euforia desmesurada, aos ditirambos jornalísticos? Com estes resultados e estas exibições das nossas segundas linhas (um comentador escocês dizia que a Escócia tinha perdido com a terceira equipa de Portugal, no que era capaz de ter alguma razão), temo bem que sim. Como é que chegámos aqui? E será que, daqui a uns meses, não estaremos a olhar para este interlúdio como uma breve e estranha idade de ouro?
Recuemos quatro anos. Quando Portugal foi eliminado do Mundial do Brasil, depois de ter sido enxovalhado pela Alemanha, de ter obtido um milagroso e desonroso empate com os norte-americanos e de não ter conseguido ganhar ao Gana por 20-0, ou lá o que era, certas vozes pessimistas decretaram o fim do futebol português tal como o conhecíamos. Era uma selecção velha, cansada, composta por veteranos massacrados por múltiplas batalhas e não se via no horizonte quem lhes pudesse suceder. Nove dos vinte e três jogadores já estavam na casa dos trinta e, pior do que isso, com menos de 25 anos só havia três jogadores: William Carvalho, Rafa Silva e André Almeida. Concedo que o cenário não era animador. Porém, se há coisa que o futebol português ensina com liberalidade a quem quer aprender é que nunca se deve desconfiar da sua capacidade de gerar jogadores de talento por artes que, aos países que apostam na ciência e no método, deverão parecer feitiçaria.
O despedimento de Paulo Bento foi acolhido com algum agrado, mas a nomeação de Fernando Santos eliminou os ténues raios de optimismo que começavam a despontar. E, no entanto, dois anos depois, Portugal sagrava-se campeão europeu, Fernando Santos, uma espécie de negativo fisionómico do presidente Marcelo, tornava-se o mais feliz dos homens carrancudos, e a renovação de frota que, dois anos antes, parecia impossível começava a materializar-se: com menos de 25 anos havia Raphaël Guerreiro, Danilo, João Mário, William Carvalho, André Gomes, Renato Sanches, Rafa Silva e Cédric. Além destes, Bernardo Silva, talvez a maior promessa, só ficou de fora devido a lesão.
Entretanto, para as contas do Mundial na Rússia entraram André Silva, Rúben Dias, Gonçalo Guedes, Ricardo Pereira, Bruno Fernandes e Gelson Martins. Nélson Semedo, João Cancelo,
Rúben Neves e Pizzi, por exemplo, ficaram de fora. Chegamos à Liga das Nações e não só já não nos preocupamos com a renovação dos quadros da selecção, como começamos a ter suores frios com o problema da abundância, aquilo que geralmente se designa por uma “boa dor de cabeça” para o treinador. Gedson, Kévin Rodrigues e Sérgio Oliveira estiveram nos seleccionados e ainda andam por aí jogadores como Diogo Dalot e Ronny Lopes, além de promessas como Rúben Vinagre, Jota, Diogo Gonçalves ou Heriberto Tavares.
O problema não é apenas de abundância, mas da qualidade que as alternativas demonstram. Partimos para a Polónia já sem Ronaldo. Gonçalo Guedes lesionou-se num jogo da liga espanhola. Antes do jogo, o homem que o iria substituir, Bruma, foi acometido de uma indisposição intestinal. Para o seu lugar foi chamado Rafa Silva e foi ele que quase marcou o segundo golo da selecção. A impressão com que ficamos é que se Rafa Silva tivesse escorregado no balneário antes de entrar em campo, Fernando Santos chamava Hélder Costa e o mais provável é que fosse o extremo do Wolverhampton a marcar um golo, como marcou ontem à Escócia. Bruma, já recuperado da indisposição, marcou um golo digno de um craque. O jogo era amigável e esta Escócia não é um adversário formidável, mas chegar a Glasgow com uma dupla de centrais constituída por Luís Neto e Rúben Dias, com Hélder Costa e Bruma nas alas e Eder a ponta-de-lança e ganhar o jogo nas calmas, sem grande turbulência, é perturbador.
Isto está a correr-nos tão bem que só pode ser mau augúrio. André Silva, após um ano para esquecer em Milão, é o Pichichi em Espanha, Cancelo é considerado um dos melhores dez laterais do mundo, Bernardo Silva afirma-se em definitivo no clube e na selecção e até Renato Sanches ressuscitou para o futebol e faz assistências para Eder, que não marcava por Portugal desde a final de Saint-Denis, como dois fantasmas daquele europeu reunidos para arrastar as correntes no castelo escocês. E a equipa, após um Mundial de resultados satisfatórios e mau futebol, começa finalmente a jogar ao nível que o talento dos jogadores que a compõem promete.
Depois de anos de assinalável sucesso em tournée com a banda “Ronaldo e Mais Dez”, terá chegado a hora de conquistarmos o mundo entregando o palco a “Eder e os Segundas Linhas”?"
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