terça-feira, 28 de agosto de 2018

“Dei uma patada no Fernando Couto, não resisti, o árbitro apitou e eu pensei: 'Fiz merda'. Mas ele expulsou o Mozer”, Parte I

"O mito do pai, José Águas, perseguiu-o sempre. Mas nem por isso Rui deixou de batalhar pelo seu espaço e sucesso no futebol, sobretudo no Benfica. No início afastou-se dos relvados, entrou para a faculdade, vendeu electrodomésticos. Depois voltou ao futebol, casou, teve filhos, tudo isto numa “guerra”, a sua, que diz ter sido muito difícil, às vezes penosa mesmo. A passagem pelo rival, o FCP, marcou-lhe o percurso de tal maneira que ainda hoje é imperdoável aos olhos de muitos benfiquistas. Jogou em Itália, na Reggiana, onde deixou de ser jogador, ainda sem futuro definido.

Nasceu em Benfica, literalmente.
Sim, na casa dos meus pais, em Benfica. Com uma parteira. Rezam as crónicas que o cordão estava meio enrolado e tiveram de dar-me uns açoites para eu chorar.

São quantos irmãos?
Somos três. Tenho duas irmãs, a Lena é a mais velha e a do meio é a Cristina.

A Lena toda a gente sabe o que faz, é cantora, e a Cristina?
A Cristina trabalha nas finanças desde há muito anos, mas teve uma ou outra aparição no coro do Carlos Paião.

O seu pai já era um jogador famoso quando nasceu.
Sim, quando nasci ele tinha 30 anos, por isso estava mais do que consagrado e foi na altura em que o Benfica fez as primeiras grandes proezas, na Taça dos Campeões Europeus, no início dos anos 60. 
Cresceu onde em concreto?
No Bairro de Santa Cruz.

Qual é a primeira memória que tem da infância?
Quando se fala de infância, fala-se logo de uma relação muito chegada ao desporto, ao meu pai; a imagem que tenho da felicidade de ter um quintal, da bola e do meu pai. Desde muito pequeno lembro-me que as pessoas vinham ter com ele e tinham uma admiração que eu não percebia muito bem porquê. Depois fui percebendo, claro.

Quando é que tem a noção de quem é o seu pai?
Quando começo a aperceber-me da quantidade de gente que chega e fala com o meu pai como se estivesse a falar com uma pessoa muito importante, muito famosa. É muito por aí. Depois houve uma altura em que os jogadores, por muito famosos que fossem, conviviam com as famílias uns dos outros, por isso lembro-me também desse ambiente diferente.

Quem eram os jogadores com quem o seu pai convivia mais?
Lembro-me do Eusébio; ele e mais uma meia dúzia iam a casa dos meus pais como se fosse a casa deles. É muito engraçado: hoje olhamos e a realidade não tem rigorosamente nada a ver com esse tempo. Era muito cordial, era um ambiente diferente.
E a primeira vez que entrou no Estádio da Luz, lembra-se?
Não especialmente. Lembro-me de lá ir muitas vezes desde miúdo pela mão do meu pai. Fui o terceiro filho e era o rapaz por isso desde logo a nossa relação de pai e filho foi muito forte e muito constante. Ele deixou de jogar tinha eu quatro anos. Passei a ser o companheiro dele pós profissão, por isso desde muito cedo que me habituei a ir ao estádio.

Não se lembra de ser adepto de outro clube que não o Benfica, calculo.
Não, não (risos).

Quem decide quando vai jogar pela primeira vez para um clube, o seu pai ou é o Rui que pede para ir?
Felizmente, o meu pai nunca me pressionou para fazer coisíssima nenhuma, muito menos ser ou ter que ser o sucessor dele. Deixou-me perfeitamente à vontade para eu fazer aquilo que eu entendesse em termos de actividades. Tanto é que eu joguei voleibol durante seis anos, federado, e não jogava futebol. O futebol aparece na minha vida com mais consistência já com 18, 19 anos.

Mas antes disso não jogou no Clube Atlético e Cultural da Pontinha?
Digo jogar a sério. Na Pontinha era juvenil, tinha 16, 17 anos, e na altura nem treinávamos. Jogávamos ao domingo e voltávamos a encontrar no domingo onde quer que fosse o jogo.

Então e o Benfica?
O Benfica inaugurou as suas escolas de futebol tinha eu 10, 11 anos e fui um dos miúdos que começou o projecto mas depois acabei por não prosseguir, não me senti muito bem e preferi ficar no meu volei.

Por que não se sentiu bem, recorda-se?
Ser filho de quem era nunca foi uma ajuda, foi algo que dispensaria, assim como os meus filhos dispensariam ter um pai com carreira.

Sentia esse peso por causa dos outros miúdos ou dos treinadores?
Nessa altura por causa dos miúdos. Quer na escola, quer no futebol, há sempre aquela coisa do pai. “Ah, tens a mania só porque és filhos de...”. Levei com isso durante muitos anos e se calhar por isso afastei-me um bocadinho no início.
O seu pai não ficou chateado por não ter querido continuar no Benfica?
Não. Eu tento ser para os meus filhos o que o meu pai foi para mim. Muito flexível, muito liberal, perfeito, nunca forçando fosse o que fosse.

Como é que resolve ir para o CAC da Pontinha?
Eu tinha um colega de escola que jogava no clube, e como jogávamos na escola e eu destacava-me de alguma maneira, ele desafiou-me a ir lá jogar. Acabei por ir e é aí que começa a minha história um bocadinho mais séria, no Pontinha. Entretanto, jogamos contra o Sporting e o Sporting interessa-se por mim e por um colega meu.

Quem, o Aurélio Pereira?
Sim.

Não houve uma luta interior?
Nem o meu pai se meteu.

A rivalidade era muito grande.
Sempre foi. Mas, de repente, eu, um miúdo de 16 anos, o Sporting convida-me, vou dizer que não? O Benfica ignora, o Sporting convida... Lá fui, fiz um ano mas tive um problema com uma lesão que me afastou um bocadinho do desporto mais a sério, durante um par de anos.

Que lesão?
Tive um problema num adutor que demorou muito a curar na fase dificílima de júnior para sénior, foi decisivo para eu afastar da ideia o futebol.
Alguns jogadores e treinadores têm referido isso mesmo, que a passagem de júnior para sénior é uma coisa muito dura. Porquê?
Muito dura também em termos físicos porque há miúdos que se definem fisicamente mais cedo do que outros. Há gente que tem a maturação mais atrasada e que por isso define o seu corpo mais tarde. Foi o meu caso: cresci mais tarde, fortaleci mais tarde.

Quando diz mais tarde...
18, 19 anos e há gente que se impõe em escalões mais baixos pelo seu poder físico, mas depois acabam por se perder.

E da escola, gostava?
Não achava grande graça mas ia fazendo a minha obrigação que era ir passando os anos. Nesse período em que estive sem saber o que fazer, acabei por entrar no ISEF, que agora é a FMH. Ao mesmo tempo fui descobrindo a necessidade de ganhar dinheiro também e comecei por ajudar a minha mãe que vendia umas máquinas e aparelhos de cozinha, comecei por fazer isso, depois trabalhei para o INE, a fazer estatísticas.

Isso tudo nesse período dos 18, 19, 20 anos?
Sim. Depois surge a hipótese de ir treinar ao Sesimbra que foi a minha primeira equipa enquanto sénior.

Como surge essa oportunidade?
Isto tem tudo naturalmente a sua história. Quando comecei a sentir-me bem da perna fui fazer uns torneios de futebol de salão e nessa equipa havia um rapaz que jogava no Sesimbrense e que me desafia a lá ir. Fui e fiquei imediatamente. Começo aí a minha carreira de sénior. Era um sacrifício danado, tinha aulas de manhã no ISEF (FMH), morava em Benfica e tinha que ir para Sesimbra. Apanhava o autocarro, depois o barco.

Redescobriu o prazer de jogar futebol?
Sim, nessa fase sim. Embora não acreditasse muito, porque nos primeiros anos a jogar no pelado, na III e II divisão, uma pessoa está um bocado a leste de pensar que vai chegar alto. Mas o que é facto é que as coisas foram acontecendo nesse período que foi muito desconfortável, mas também revelador de uma pessoa com força e persistência para fazer esta vida.

Nessa altura a sua irmã Lena já tinha alcançado o sucesso na música?
Tinha. Lidar com um pai famoso e depois com uma irmã... ...No caso da Lena como era noutra área nunca foi muito problemático.
Mas não sentia aquela “obrigação” de também ter sucesso?
Não. Assim à distância não sentia. Sentia sim a história do meu pai, mesmo não sendo na altura um projecto de jogador, sentia o peso, o peso da história. Da minha irmã não, era uma coisa engraçada para mim, diferente também. Em termos de futebol eu lá ia tendo a minha luta, ganhado o meu dinheirito, pouco.

No Sesimbra já lhe pagavam?
No Sesimbra pagavam. Sete contos (35 euros), que era muito pouco. As pessoas agora dizem “Ah nesse tempo era bom”, não era nada, era muito pouco.

Lembra-se de alguma coisa que quisesse comprar e que o tenha feito com esse primeiro ordenado? 
Comprei um aparelhinho para ouvir música, sempre gostei muito de música. No Sporting enquanto júnior ganhei dois contos e quinhentos (12,5€), mas roubaram-me no autocarro. Fiquei sem carteira, nunca percebi muito bem como, mas o meu primeiro ordenado foi traumatizante. Depois eram sete contos no Sesimbra e na segunda época passei para 22 contos (110€) porque na primeira época tinha-me destacado e pedi mais dinheiro.

Ainda está a viver em casa dos pais.
Nessa altura, entre o Sesimbra e o Atlético, casei.

Onde é que conhece a sua mulher?
Na faculdade, a Leonor era minha colega de faculdade.

Acabou o curso?
Não, foi uma parvoíce, mas ela depois também ficou grávida do nosso primeiro filho, o André, que tem 33 anos e é publicitário, e acabou por não terminar o curso. Nem ela, nem eu. Entre Sesimbra, onde estive dois anos, e o Atlético, onde estive um ano, casamos, sem qualquer tipo de condições para casar. Sem dinheiro, foi aquela maluquice. Estávamos muito bem os dois, arranjámos uma casa de porteira que era muito baratinha, um T0 em Benfica também.

Viviam só do seu ordenado?
Sim e com uma ajudinha dos pais dela.

Ninguém se opôs ao casamento?
A mãe dela: a questão do curso preocupava-a bastante e com razão. Ela vive connosco agora. É uma senhora extraordinária, com 90 anos. Tem uma memória... É difícil ver uma pessoa assim como ela, tive muita sorte na sogra. Depois casámos, faço um ano no Atlético e passo para o Portimonense, para a I divisão a ganhar uns 70 contos (350€).

Antes disso, quem foram os treinadores da formação?
Formação não tive praticamente. Na Pontinha tinha o senhor João Nascimento que era dentista de profissão, mas não treinávamos, jogávamos só aos domingos. No Sporting já treinava e era o professor Cassiano Gouveia, um senhor de Leiria. O senhor Vicente Lucas que foi um ilustre jogador do Belenenses, foi meu treinador no Sesimbra.

Onde sente que evoluiu mais nessa altura?
No Sesimbra porque aquela coisa da dificuldade, é isso que nos faz evoluir. Em termos de treino, de treinador, não se pode dizer que foi isso que fez a diferença.

Vai para o Portimonense sozinho ou já com a sua mulher?
Ao início vou sozinho para o Algarve e ela vai lá ter aos fins de semana. Depois ela fica comigo e acaba por não finalizar o curso. O André nasce em 1984.

Adaptou-se bem?
Perfeitamente, sempre me desenrasquei. Ia à praça, fazia os meus grelhados, não muito mais do que grelhados e cozidos, coisas muito simples, nunca me atrapalhei. Sou uma pessoa que gosto de ter os meus momentos de tranquilidade e de isolamento. Sempre gostei.

É o Manuel José que o vai buscar para o Portimonense.
Sim, foi ele que me foi buscar ao Atlético, porque viu-me jogar, treinava ainda o V. Guimarães. Gostou, no ano seguinte vai para Portimão e leva-me. Isso é muito importante no meu “nascimento” enquanto profissional.

Como é que se dá o regresso ao Benfica?
Na segunda época o Portimonense faz a melhor época de sempre até hoje e nesse seguimento surge o convite. Mas recebi também um convite do FCP.

A escolha não foi difícil?
Foi em dois momentos diferentes. A decisão acabou por ser tranquila. O Benfica pagava menos já nessa altura, mas é melhor ficar por aqui para ser simpático. Esta história do Benfica e FCP também me persegue há muitos anos.

O FCP pagava mais e não vai porquê?
Nessa fase o FCP pagava mais aos jogadores. O Benfica tinha aquele Fernando Martins que era um unha de fome, mas ficamos assim. O convite do FCP aparece numa altura em que eu tinha a história da tropa em suspenso.
E foi à tropa ou não?
Não fiz, fui objector de consciência. Ir à tropa implicava parar dois anos na minha carreira numa altura em que estava a evoluir. Por isso decidi recorrer a testemunhas, que na altura eram necessárias, e consegui ficar livre da tropa e continuar a jogar no Portimonense. Recebo o convite do FCP no início do 2.º ano no Portimonense mas ainda tinha a tropa por resolver e eles não assumem a questão e o Benfica vem quando já estava livre da questão militar. Por isso foi fácil decidir.

Vem para o Benfica, volta a viver em Lisboa, fica a viver onde?
Nessa altura compro o meu primeiro apartamento, em Alfragide, já ganhava melhorzinho, sem ser nada de especial. Vivemos ali até eu ir para o FCP. 

Já lá vamos. Quando chega ao Benfica, sente que regressa noutra posição?
Não, sinto que entro como filho de quem era. Ninguém me passava cartão, nem a bola às vezes passavam, era uma desconfiança.

Quem era o treinador?
O Mortimore de quem guardo boas recordações, uma pessoa muito austera, muito militar, muito justa.

Chega a um plantel cheio de nomes feitos como Bento, Pietra, Sheu, Néne....
Sim um grupo muito forte, muito carismático, já com muito passado, muita história. Naquela altura os que vinham de novo, era natural aquele distanciamento, temos cá o nosso grupo, e só entram aqueles que merecerem entrar. Um bocadinho como um ritual das tribos no fundo.

Sentiu alguma dificuldade então.
Não. Aceitaram-me. Viram o meu empenho e o valor que podia dar à equipa. O meu problema era exterior.

Por ser filho de quem era empenhava-se ainda mais?
Exactamente, senti que tinha que dar tudo. Era a única maneira de triunfar ali e foi isso que fiz.

O seu pai percebia o peso que o seu nome tinha em si?
Percebeu. Sempre fui mais de interiorizar e isso às vezes é um bocadinho desgastante, mas é um problema que tenho, não exteriorizo muito. E nessa altura sofri mas não ia chatear o meu pai com isso.O meu pai sempre foi uma pessoa de apoio, otimista, de dar uma palavrinha de moral. Nunca de crítica “Ah, devias fazer isto ou aquilo”, sempre com uma postura muito positiva em relação a mim. Percebeu as dificuldades que eu poderia atravessar, mas não foi nada que tivéssemos falado muito entre nós. Era a minha guerra, era a minha luta, foi difícil mas passado uns meses comecei a vingar. 
Quando diz que foi mais difícil a nível exterior, significa que a desconfiança era maior por parte dos adeptos?
Sim, desconfiança e comparação, “O seu pai era assim, o seu pai era melhor” (risos), continuamente. As pessoas não medem, não é por mal, admiravam o meu pai, mas não me inferiorizei com isso, acabei por batalhar, procurava ver aquilo que o senhor Mortimore gostava,. “Ele gosta assim, vou fazer assim”. Empenhei-me ao máximo e passados uns meses as pessoas já me aceitavam.

Quanto tempo é que demorou?
Uma meia dúzia de meses, eu depois faço os três golos ao FCP. Marcar três golos ao FCP é uma coisa que conquista qualquer um. Acho que foi aí que senti, estou aceite.

Na segunda época o Mortimore sai.
O Mortimore ganha o campeonato e a taça e curiosamente é mandado embora, porque era antipático e houve uns colegas meus na altura que terão tido alguma influência.

Alguns dos pesos pesados de que falamos há pouco?
Sim, não gostavam tanto dele, o homem... também havia certo tipo de atitudes que não tolerava, houve ali um desencontro de personalidades.
Quando é chamado à selecção a primeira vez?
Na última época do Portimonense, para um ou dois jogos particulares, mas estava ainda um bocadinho fora. Fui um par de vezes mas ainda não era considerado.

Quem era o seleccionador na altura?
O Juca. Sou internacional de Esperanças pelo Portimonense com o Zé Torres e depois é o Juca que está na selecção nacional. Mas acho que o primeiro jogo oficial que disputo pela selecção é no México.

Foi especial o Mundial do México 1986.
Foi o único Mundial a que fui, foi muito marcante, mesmo não tendo corrido especialmente bem. 

Quando chegou à selecção o ambiente já não era o melhor.
Como não tinha experiência anterior com eles, soube depois que no Europeu anterior tinha havido uma grande confusão também. Mais ou menos com as mesmas pessoas, as mesmas questões, os mesmos dirigentes. Noutro dia estava a ler um livro que alguém escreveu, com o meu testemunho também e realmente uma coisa que nunca tinha pensado, mas que é lógica, é que aquilo acontece no seguimento da Revolução de Abril. É uma dúzia de anos depois mas há um poder e um querer, e eu nunca tinha pensado nisso.

Há uma tomada de consciência dos jogadores de que estavam a dar dinheiro a muita gente e se calhar o que recebiam em troca proporcionalmente não era justo.
Sim. E o respeito, que era nenhum. Foi um bocadinho por aí. Eu era muito inexperiente em termos de selecção. Mas dentro do meu estilo mais introvertido, sempre fui uma pessoa que adoptou posições e quando tinha que ser incómodo, era incómodo. Educado, mas incómodo, desde que achasse que era justo e percebi imediatamente que aquela revolta que estávamos a fazer tinha sentido, por isso estava com os restantes.

Também vestiu a camisola ao contrário?
Sim, fiz aquilo que era suposto fazer e que seria bom fazer. Na altura houve coisas que também vieram muito com o coração... Sei lá, não adianta agora esmiuçar, mas fizemos aquilo que achávamos que era justo fazer e não foi de ânimo leve. Só que do outro lado também estava um “muro de Berlim”. Gente do antigamente, da outra senhora.
Isso reflectiu-se a nível desportivo. A prestação também não foi a melhor. Que leitura é que faz?
Em termos da direcção da equipa, do treinador, da organização, as coisas eram muito pobres. Em termos gerais as coisas eram muito amadoras. A Federação era amadora, a organização, e é difícil não tocar no treinador também, porque eu acho que um bom treinador numa situação destas podia ter tido uma influência que um comandante deve ter. Indo por outro caminho, por exemplo. Na altura havia uma marcada rivalidade entre Benfica e FCP, entre os jogadores de ambas as equipas. Quando digo marcada digo separada. Uma mesa aqui com os fulanos do FCP e outra ali com os do Benfica. Tivemos a capacidade, contra um inimigo comum, de nos juntarmos e acabou por haver uma dinâmica interessante para melhor. Agora as condições em que estivemos - de estágio, de treino -, eram coisas que acabaram por redundar numa prestação fraca. E naqueles tempos embora o jogador de futebol ganhasse infinitamente menos, sempre foi uma personagem invejada. O conhecimento do público em geral, o juízo que fez, foi que os bandidos éramos nós. O que se passou realmente ficou um bocadinho aligeirado e nunca foi explicado.

Há ali um momento que se calhar também vira a opinião pública contra os jogadores, quando surgem as notícias de que haveria festas com prostitutas.
Não sei. Acho que na altura a nossa imprensa era tão fraca, aquilo era tão confuso que acho que não foi por aí. Esse histórico deixa o rasto para depois ser escrito. Na altura a ideia que tenho era: guerra. Os bandidos dos jogadores que não sei o quê e do outro lado, os fulanos da Federação. Embora o resto tenha existido, existiu também porque era uma desorganização total, o treinador só era treinador naquela hora e meia do treino.

Como correm as duas últimas épocas no Benfica antes de ir para o FCP?
Correm bem. Nessa altura começa a aparecer um ou outro agente, havia ainda pouca gente a sair para o estrangeiro e nessa última época em que estou no Benfica surgem finalmente interesses de fora.

De onde?
De França, de Itália, de Espanha.

O Rui já tinha agente?
Não. Há gente que me vai contactando, mas depois aparece o FCP e decido ir. Tinha prometido que não falava mais nesta coisa… .

Só mais uma.
Em vez de ir para fora decido ficar cá, arcando com tudo aquilo que sabia ia acontecer. Tomei uma opção que não era suposto tomar, tendo em conta o meu passado, da minha família... E até hoje, passados estes anos todos, frequentemente sou confrontado com isso. Por isso há uns anos disse para mim mesmo, não vou colaborar mais na lembrança desta história, porque já chega. Em cada Benfica-FCP ou FCP-Benfica, lá vem a entrevista com o Rui: “Ah, quando veio e quando foi e não sei quê” Já me chega disso porque já falei 500 vezes sobre isso, já ouvi 500 mil gajos a dizer que não devia ter ido... Chega.

Mas decide ir para o FCP porquê em concreto?
Por razões económicas, puramente económicas. Tinha filhos pequenos e pergunto-me: “Vou ganhar “x” não sei para onde ou fico em Portugal? Vou comprar uma guerra. Vou, mas prefiro ficar aqui com os miúdos que têm já a escola…” Foi isso.

Não havia hipótese de continuar no Benfica?
Não. Há uma coisa que eu às vezes digo particularmente, que é “arrependo-me” entre aspas, de ter sido tão anjinho. Quando vejo continuamente jogadores em fim de contrato em negociação, a servirem-se dos interesses alheios para aumentar os seus salários...Eu, anjinho ou não, ingénuo, seja o que for, nunca achei que devesse usar o interesse, neste caso do FCP, para fazer um melhor contrato com o Benfica. Não achei que devesse fazer isso e não fiz, porque se fizesse não teria saído para o FCP. Essa é a grande questão que ponho. Fui um fulano sério num meio de pouca gente séria, porque sou assim. Mas fiz o meu trabalho e as pessoas respeitaram-me. Exerci o melhor que pude a minha função, pude voltar. Claro que isso nunca foi esquecido, eu sei.

Na altura as pessoas perceberam que foi por questão económica?
Claro, eu disse. Mas por muito que se explique e por muito que se diga que tem a ver com a família, com o futuro, com a estabilidade, o exemplo do pai a quem eu tive que ajudar em determinada altura. E o meu pai foi muito melhor que eu como as pessoas diziam, ganhou mais títulos do que eu, mas ganhou muito menos dinheiro do que eu. E por isso eu acabei por poder ajudar o meu pai, porque se calhar tomei essa despesa e pude de facto ajudar o meu pai. E gostei muito dessa parte.

Quando vai para o FCP, a sua mulher e os seus filhos vão consigo?
Vão. Não fazia sentido deixar os miúdos pequenitos.

Nessa altura já tinha dois filhos, o André e a Mariana.
Sim, na altura a Mariana tinha meses. E eu sempre adorei os miúdos. Tenho uma dificuldade, mesmo hoje em dia, em separar-me deles. Estive agora no Egipto e foi uma doença (risos). E eles já são todos adultos. Naquela altura tinha uma adoração e tenho pelos miúdos que obviamente não podia separar-me deles.

Fica a viver onde no Porto?
No primeiro ano na Avenida da Boavista, num condomínio que se chama Foco e que ainda existe. No segundo ano acabo por comprar uma casa na Maia. Vendia-a passados uns anos.

E a adaptação à vida e às gentes do Porto?
Muito fácil. Receberam-no bem? Muito bem. No clube, foi um bocadinho aquilo que disse em relação ao Benfica. Também era um grupo fechado e com a agravante que chegava um rival. Há um mês era um rival e de repente estava ali na casa deles. Por isso o início foi de conquista também. 

Lembra-se de algum jogador que estivesse mais de pé atrás?
Não quero pessoalizar, era um grupo. Havia um que no treino não me passava a bola (risos).

Quem era?
Não vou dizer.

Ele de certeza que sabe.
Se calhar não, nem notava, mas foi a única vez que me aconteceu uma coisa tão ostensiva de um colega de equipa. Mas depois a coisa passou e as pessoas nortenhas têm uma capacidade de receber realmente muito grande.

E era aquele controle que se dizia que havia? As gentes da cidade informavam o clube?
Sim, havia controle, mas não tem nada a ver com a actualidade. Nessa altura podia-se ter o seu excesso no dia certo e ninguém criticava por isso, desde que não houvesse exageros. Percebia-se que havia uma organização mais perfeita.
Gostava de sair à noite ou era mais caseiro?
Saía normalmente uma vez por mês. A minha mulher é cabo-verdiana de nascimento e gosta de dançar. Saíamos no dia do jogo, ponto final. Dia de jogo, fosse onde fosse, íamos jantar fora e acabava ai o divertimento social.

No futebol com quem criou mais amizade?
Com o Pacheco, somos amigos ainda hoje, com o Dito, o Diamantino, Vítor Baia, o Domingos.

E inimigos: alguma vez teve algum declarado ou não?
Não muito marcado. Havia aquelas rivalidades de posições, mas nada demais.

Com quem? Nessa altura quem era o central mais duro?
Nessa altura era uma estupidez, o melhor central era o que batia mais no avançado contrário, para mal dos meus pecados.

Mas o Rui não se deixava ficar.
Não (risos). Foi algo que defini para mim, que era positivo enquanto jogador, que não aceitasse ser o saco, por isso era uma questão de imposição também.

Alguma vez teve algum episódio mais caricato que nos possa contar?
Tenho. O Fernando Couto do FCP tinha uma rivalidade violenta com o Mozer do Benfica. E eu com o Fernando Couto também aqui e ali. Uma vez num jogo, nas Antas, num lance de bola parada contra o Benfica, o Fernando Couto está de volta do Mozer e eu já estava farto dele e naquela movimentação da bola quando está quase a sair, o Fernando passa por mim e eu dei-lhe uma patada ali no meio da confusão. Não resisti (risos). Dei-lhe a patada e entretanto saio em direcção à bola e ouço um apito “priii”. “Já fiz merda, estou lixado”. Olhei e ninguém me ligava nenhuma (risos), culparam o Mozer da agressão. O Fernando Couto era um fiteiro do caraças, e estavam todos a apontar para o Mozer que, coitado, não tinha feito nada e foi expulso.

O Mozer soube que foi o Rui?
Disse-lhe depois, quando acabou o jogo (risos).

A forma de jogar no FCP era muito diferente da do Benfica?
Historicamente as equipas nortenhas em particular, primam por uma maior envolvência, agressividade e combatividade. Hoje em dia já não é tanto assim porque as misturas são de tal ordem que não dá para padronizar. Mas na altura, quando saí do Benfica, eu era o único avançado e no FCP joguei sempre em parceria, especialmente com o Madjer.

Isso exigiu uma adaptação da sua parte.
Sim. Mas não tive problemas nenhuns com isso até porque falando do Madjer falo do jogador mais talentoso com quem joguei. E assim sendo é mais fácil. Embora fosse muito talentoso, era um indivíduo que dentro da sua individualidade e talento natural jogava em equipa também. Não era aquele talentoso que só queria a bola para ele.

Lembra-se do primeiro jogo que fez pelo FCP contra o Benfica?
Perfeitamente.

Estava muito ansioso?
De uma maneira geral a pré-competição para mim era invariavelmente angustiada, nervosa, preocupada, concentrada.

Porquê?
Porque sim. Era assim.

Também é ou era assim noutras situações da vida?
Sou cuidadoso e preocupado com as coisas, mas particularmente o futebol, a competição, a envolvente, a tensão, fizeram de mim isso que acabei de dizer e que resultou depois num afastamento que eu pretendia que se mantivesse. Eu acabei a minha carreira de jogador muito desgastado e com muita vontade de a acabar.

Falando assim a sensação que dá é que quase que era penoso jogar.
Também contribuiu a questão da lesão, as contas por acertar por causa do episódio do FCP. Depois a questão da liderança na altura do Benfica, dos problemas que existiam, etc. Foi um conjunto de coisas.

Assinou pelo FCP por quanto tempo?
Acho que foram três épocas.

Só fica duas.
Porque havia a possibilidade de saída, mediante o pagamento de um montante que não era importante na altura.

O que é que o faz voltar?
Como havia essa possibilidade no contrato e como o FCP devia-me muito dinheiro da segunda época.

Só ao Rui ou aos outros jogadores também?
Eu seria dos mais bem pagos e então a questão da cláusula acabou por ser alcançada com relativa facilidade. O Benfica teve que pagar pouco para o meu regresso. Pagou a dívida e mais qualquer coisa.

Quem é que o chama ao Benfica?
É na fase do Jorge de Brito que está a apoiar o clube. Há um amigo meu de há muito tempo, que é benfiquista e tem um papel decisivo, o Henrique de Freitas. Ele puxa o assunto e fala com o Benfica, sabia também da cláusula e acaba por ser fundamental no meu regresso.

Vem de bom grado? Queria voltar a Lisboa e ao Benfica?
Queria, queria.

Porquê?
Por razões óbvias. Tinha feito aquilo que achava que devia ter feito porque era melhor para mim, mas ao mesmo tempo tinha ficado aquele desconforto que tinha a ver com tudo o que falamos, com o benfiquismo, com a família, comigo, com o meu pai.

Sentia que devia isso ao seu pai mais do que a si?
De alguma maneira. Sabia que era uma satisfação para ele. Ainda hoje me lembro que, quando saí da casa do Jorge de Brito, já de madrugada, fui acordar o meu pai que ficou muito feliz. Ainda me lembro do sorriso dele, meio ensonado.

Volta a viver no apartamento de Alfragide?
Não, compro uma casa grande em Caxias. Quando o Martim nasce já nos vivíamos nessa casa e por aí ficamos.

A sua mulher que andou sempre consigo e a cuidar dos filhos, nunca lhe cobrou nada, o ter deixado a faculdade?
Não.

Nem nunca quis ter um negócio, fazer qualquer coisa?
Aqui e ali tivemos alguns, quando deixei de jogar, mais para mascarar a alteração de vida que nós temos. Um tipo faz uma carreira de futebolista e de repente acaba e ou é treinador e eu na altura não me sentia com vontade de o ser. Com o meu temperamento tinha sofrido muito e não tinha vontade de voltar a esse tipo de sofrimento e nesse pós carreira, estruturo o projecto de escola que mantenho depois uns anos, onde ela trabalhou também. Entretive-me de alguma maneira e mascarei a falta da bola.

O que é que aconteceu à escola entretanto?
A escola acabou a partir do momento em que deixei de ter possibilidade de acompanhar mais de perto, depois os clubes também pegaram na ideia. As escolas do Benfica, as escolas do Sporting, as escolas do Belenenses… A partir do momento em que os clubes entram nisso, torna-se mais complicado.

Quando regressa ao Benfica, primeiro apanha o Eriksson, depois teve o Tomislav Ivic, o Toni e o Jesualdo. Destas quatro épocas no Benfica, qual é a melhor e a pior recordação que tem?
A melhor é a primeira época. Eu sabia que tinha que estar muito bem, porque havia ali um peso que precisava de ultrapassar. Engano meu, porque acabei por não ultrapassar, mas pelo menos naquela altura para ser readmitido tinha que realmente ser bom e fomos campeões, fui o melhor marcador, por isso foi uma época muito boa. Consegui a bola de prata, que era uma coisa que me dava gozo alcançar - o meu pai ganhou quatro ou cinco. Na segunda época parto o pé e muitas das pessoas acham que eu tinha finalizado ali a minha carreira. Foi mais uma guerra. Enquanto estive lesionado e enquanto profissional, fui muito persistente e muito positivo, no infortúnio era resiliente. E consigo fazer uma recuperação muito boa. Mas de mais negativo foi uma fase em que houve falta de liderança no Benfica. Há os jogadores russos que vem e baralham tudo em termos de regras básicas de profissionalismo, da justiça. Isso enquanto jogador e pessoa que se preocupa com as coisas, o meu temperamento não me impediu nunca de intervir e falar e assumir uma posição de algum desgaste, já que ninguém o assumia, mesmo publicamente. Isso pesou. Comecei a dormir mal, foi uma fase chata. E já tinha mais de 30 anos e para além da história que passou há um pé que partiu por isso sinto ao longo do tempo as coisas a pesarem à volta. Senti o carinho a esvair-se o apoio a desaparecer.

Interna e externamente?
Sim. E senti claramente o meu rendimento a cair porque eu carecia muito de apoio e quando esse apoio se perdeu o meu rendimento caiu drasticamente.

Sai do Benfica em que termos quando vai para o E. Amadora?
Calmamente, em final de contrato, falaram comigo, e acabou, sem qualquer tipo de ressentimento. Nem podia ter.

Esteve dois anos no E. Amadora...
...Sim, com essa prenda chamada Acácio Casimiro. Há os maus treinadores mas que não têm a mania que são bons e há outros que para além de ser maus têm a mania que são bons. Mas não quero falar de treinadores.

Mas também... sair do Benfica para um E. Amadora... A diferença é enorme. Enorme.
Um desrespeito pelo jogador. Aquilo que eu sentia num clube grande, o respeito, ali os dirigentes é que são as estrelas. A maneira como agem...o jogador é lixo ali. Senti claramente a diferença e estranhei porque já jogava há muitos anos em clube grande e de repente chego ao Estrela, embora tivesse uma ou outra pessoa de bom trato, foi difícil. E confrontei certos procedimentos. Pouco depois também sai.

Por causa desse confronto?
Não. A época estava-me a correr bem, tinha marcado uns golos. Essas questões tornavam mais chata a época mas acaba por surgir então a hipótese Itália e eu: "Porque não? Nunca fui".

Foi mais para ter a experiência de jogar no estrangeiro?
Sim.

Nunca tinha pensado muito a sério em ir para fora ou já?
Não,até porque como disse, naquela fase poucos jogadores saiam, por isso não tinha havido muitas oportunidades. Mas surgiu essa e achei alguma piada. Estava no E. Amadora, tinha sido chamado à selecção mesmo já no Estrela, estava-me a sentir reconfortado com aquilo que estava a fazer e achei que era uma boa maneira de finalizar.

Quando chegou a Itália já lá estava o Paulo Futre?
Estava. Estava a recuperar de uma lesão chata de joelho. Foi uma experiência diferente, difícil.

Difícil em que aspecto?
O clube não cumpriu completamente. Era um clube que estava em dificuldades de permanência e acabou por descer de divisão. A imprensa em Itália já nessa altura era muito corrosiva, muito stress. E por isso, é das coisas que, olhando para trás, e querendo continuar ligado ao futebol, esse passo não foi beneficio.

Em que sentido?
Ter saído de Portugal, olhando bem aquela experiência acabou por não ser benéfica, pelo contrário tirou-me do meu meio. Perdi um eventual seguimento profissional.

Nessa altura já tinha tirado o curso de treinador?
Já. Eu faço o meu IV nível, o mais alto, já quando estou na selecção com o Artur Jorge. Mas nessa altura já tinha feito três níveis.

Quando vai para Itália vai sozinho ou a família vai consigo?
Vai a minha mulher e o meu filho mais pequeno, o Martim, que já era nascido. Os mais velhos não vão porque já estavam em idade escolar mais difícil e como era meio ano, ficam com a minha sogra e com uma amiga nossa.

Eles reclamam muito?
Não. Sentiram, claro. O reencontro era sempre uma coisa muito emotiva. Depois acabaram por lá ir passar umas férias.

Adaptou-se bem a Itália?
Sim, fácil. O italiano apanha-se facilmente.

Algum colega que o tenha marcado mais lá?
Ainda hoje mantenho contacto com o guarda redes da altura, ficámos amigos, já cá esteve em Portugal.

Tinha alguma proximidade com o Futre?
Sim. O Futre é uma pessoa muito especial, muito calorosa, muito parceiro e a mulher dele da altura, Isabel, também era muito querida."

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