terça-feira, 28 de agosto de 2018

“A agressão do Sá Pinto ao Artur Jorge é de um tresloucado. Ainda o confrontei, uns empurrões, e levei um processo”, Parte II

"Primeiro teve uma escola de futebol, depois tornou-se adjunto, foi coordenador de scout no Benfica, mas é na pele de treinador/seleccionador que Rui Águas se sente melhor. A irmã Lena chegou a convidá-lo para ser vocalista da sua banda mas, apesar de não desafinar, só aceitou entrar num videoclip. Quanto ao legado e ao peso do nome que para ele mais parece ter prejudicado do que ajudado, a verdade é que o clã Águas continua ligado ao futebol. Rui voltou a ser seleccionador de Cabo Verde, Martim, o filho mais novo, seguiu-lhe as pisadas de jogador, enquanto a filha, Mariana, tornou-se jornalista especializada em futebol

Foi embora da Reggiana de Itália passado meio ano porquê?
Porque o contrato acabou e eu resolvi pôr um ponto final na carreira de jogador.

Quando chega cá, o que pensava fazer da vida?
Eu não me lembro bem o que pensava. O que me lembro é que um amigo meu, uma pessoa mais velha do que eu, me propôs a escola de futebol Rui Águas. A ideia inicial nem sequer foi minha.

Ser treinador já era uma ambição?
Não. Nessa altura eu queria evitar voltar a esta vida. Mas ao mesmo tempo é muito difícil substituir uma coisa tão absorvente por outra qualquer normal para a qual nem sequer estamos habilitados. Por isso a substituição de uma carreira de futebolista é muito difícil. Não sendo treinador, não sendo agente, director desportivo... é difícil arranjar o raio de uma coisa que uma pessoa domine e de que goste. Por isso é um drama para muita gente.

Nunca pensou no que seria se não tivesse sido jogador de futebol?
Seria professor de educação física, era para aquilo que eu estava a estudar.

E acabar o curso, pensou em fazê-lo?
Houve uma fase em que pensei, já depois de acabar o futebol, mas entretanto mete-se uma coisa, depois outra e...nunca mais. Em termos de formação fui fazendo algumas coisas. Fiz uma pós graduação em marketing desportivo e foi difícil porque uma pessoa perde completamente o hábito de estudar. Fui convidado para dar a cara ao curso no ISCTE. É uma pós-graduação a sério. Custou-me muito, mas fiz porque dei a cara, as pessoas conhecem-me, não posso dar parte fraca (risos). Fiz uma formação de psicologia também. E alguns seminários.

Estava a dizer que esse seu amigo convenceu-o a abrir a escola. Foi das primeiras em Portugal.
Foi a segunda, a primeira foi a do Humberto Coelho. Foi uma coisa simples, estruturada em instalações alheias, através de aluguer de espaço, nunca numa perspectiva de negócio clara; foi uma coisa muito pelo gosto e no fundo tentando não perder dinheiro. Eu geria mais a escola do que treinava, mas presenciava tudo aquilo que se passava. Foi muito engraçado e interessante lidar com muita gente diferente. Ainda durou 10 anos.

A primeira função que tem como treinador é na selecção. Como surge o convite?
O primeiro convite é-me feito pelo mesmo Artur Jorge, mas quando vem para o Benfica. Isto no penúltimo ano da minha carreira. Eu acabo o contrato com o Benfica e o Artur Jorge entra e pede-me como assistente dele, porque ele conhecia-me do FCP, gostava de mim, tinha confiança em mim, só que o Benfica não aceita a sugestão.

Não aceita porquê?
A explicação foi que eu estava demasiado próximo dos jogadores. Depois acredito que também tenha havido aquelas convulsões anteriores de que já fiz eco e aquilo terá deixado algum... Mas há essa primeira hipótese que não resulta e depois ele volta a convidar-me quando vai para a seleção. E aí é a minha primeira experiência.

É nessa altura que vai tirar o nível IV de treinador?
É. Eu já tinha habilitação suficiente para estar onde estava. O IV nível é o topo da formação e achei que estando na selecção devia fazê-lo.

Fica dois anos como adjunto na selecção A. Como foi o primeiro embate?
Senti-me um bocadinho fora de água ainda. Por um lado fácil, porque não me sentia muito diferente deles de facto. Não foi o agarrar de uma oportunidade, como quem diz "É isto, não vou fazer outra coisa para o resto da minha vida". Tanto assim que essa primeira experiência cai e eu não mexo um dedo para que surgisse algo imediatamente.

Em concreto quais eram as funções do adjunto do seleccionador?
As coisas estavam num patamar que não tem nada a ver com o de hoje, em que os staff's têm 10, 12 pessoas. Na altura era o Artur Jorge, eu e o Raúl Águas. E não havia ninguém para trabalhar com os guarda redes. Eu não tinha formação nenhuma, a não ser os cursos normais, mas entretanto surge a hipótese de um curso de treino de guarda redes. "Porque não"? Iria sentir-me mais útil a fazer algo realmente necessário, do que ser apenas mais um assistente ou adjunto. Então fui à Holanda fazer esse curso. Éramos 50 fulanos de uma série de países, todos eles ex-guarda redes e eu ex-avançado. Voltei e trabalhei com o Vítor Baía, que era meu colega e amigo no FCP, fui treinador dele e do Silvino. Foi engraçado. Procurei documentar-me. Falei com o Mlynarczyk, guarda redes polaco que trabalhava com os guarda redes no FCP e que tinha sido meu colega, uma excelente pessoa. Foi ter com ele ao FCP e ele explicou-me como é que fazia. Senti-me melhor, mais útil.

Entretanto há o famoso episódio da agressão do Sá Pinto ao Artur Jorge, no Jamor. O que aconteceu em concreto?
É um episódio triste. Houve uma agressão de um tresloucado a uma pessoa que pode ser pai dele, o que é uma coisa horrível. E depois há a tentativa de defesa seja como for da pessoa em questão e vale tudo. No meio da advocacia vale tudo para tentar defender um ativo. No fundo, era já o que se chamava na altura, de um clube grande, tentando culpabilizar estupidamente quem por lá andava. 

Mas o que motiva o Sá Pinto àquela agressão?
Não é convocado. Lembro-me que teve uma atitude chata num estágio ou outro e o Artur Jorge entendeu que não o devia chamar. Naturalmente, tem o seu direito. E o tipo chega ao estádio e agride o homem. Nem sabia do que se estava passar, só quando o Artur Jorge chega ao balneário para se ver ao espelho, porque estava magoado, é que me apercebo. Eu disse: "O quê?". Eu não queria acreditar quando me contaram. Saí do balneário e o Sá Pinto estava a sair de carro. Fui ao encontro dele, confrontá-lo, o que acho ser uma coisa normal. Eu, um superior de um fulano que acaba de agredir uma pessoa que é meu parceiro de trabalho. E ele da maneira como estava, enfim, uma pessoa num estado normal não faz aquilo que ele fez, mas o estado de loucura continuava tanto que houve ali uma altercação. Não houve nada de especial, uns empurrões. Pronto. Depois meteram um processo a mim. O Lourenço Pinto, advogado, processou-me e não quiseram saber da mentira, falsos testemunhos... . De repente arranjaram ali uma coisa qualquer para defender, atacando.

Isso resultou em quê?
Em nada.

Alguma vez voltou a falar com o Sá Pinto?
No dia em que aquilo acabou...Eu já cumprimentei pessoas que achava que nunca o ia fazer... Nunca fui uma pessoa conflituosa. Houve gente neste trajeto que claramente me prejudicou, foi má, meia dúzia de pessoas que eu com o decorrer do tempo acabei por voltar a cumprimentar, mas com uma certa distância. Circunstancialmente, cumprimento, porque as coisas passam-se há 10, 15, 20 anos e eu decido ultrapassar essas coisas. Mas nunca falámos mais sobre o assunto. Há coisas que não têm explicação, nem justificação.

Toda a situação ajudou-o a alimentar dúvidas sobre o rumo que queria seguir?
Pois, é tudo uma sequência. Essa é mais uma, pesada, chata. As pessoas depois chateiam-me na rua também, adeptos do Sporting. Eu levo com adeptos desde sempre. Ou porque vou para o FCP, ou porque venho do FCP, ou por causa desta história. E desse conjunto de chatices, se calhar sim, pensei :“Chega desta porcaria”. Deixa-me lá ir treinar os jovenzinhos e fazer alguma coisa de útil que isto eu não quero.

Mas depois desses dois anos como adjunto vai para o Estoril.
Sim. Surgiu o convite directo do presidente do Estoril na altura. O Estoril estava na II Divisão B e era um clube simpático, daqui da zona. Vamos. Vou e sinto-me bem. Não acabou a época no Estoril, porque entretanto o V. Setúbal que estava numa má situação na tabela e vem ter comigo. Dizem-me para esquecer aquela época, mas que contavam comigo para preparar o que vem a seguir. Fui. A coisa começa a correr benzinho e nós quase nos salvamos. Chegamos à última jornada e precisávamos de ganhar em casa e empatamos. Descemos de divisão. Da condenação estivemos quase salvos, mas descer de divisão é sempre uma coisa....

Isso foi na primeira época?
Nessa época fiz meia época no Estoril e outra meia no V. Setúbal, que desce. reinicio a época com uma equipa completamente mudada, só que aquele peso da descida, num clube como o V. Setúbal é difícil. Complicado logo de início. Mas o início é sempre mais difícil quando é tudo novo. Não havia tolerância suficiente e eu saio.
Como é que foi sofrer a primeira chicotada?
Eu encaro as coisas com muita naturalidade. Por exemplo, quando terminou o meu contrato com o Benfica, eles chamaram-me, fizeram umas grandes introduções, uns grandes problemas, “Temos de ir jantar”, etc. Mas eu, acaba o contrato, tudo bem, fui à minha vidinha, não houve jantar nem coisa nenhuma. Nenhum despeito ou problema, zero. Aceito. Tenho talvez até um exagero nesta naturalidade. Para uma pessoa normal, talvez seja difícil perceber mas quando perdemos a final da Taça dos Campeões europeus como nós perdemos com o PSV Eindhoven nos penáltis, o Benfica não ia a uma final há 20 anos, no fim eu não estava contente evidentemente, mas achava que tinha ganho a melhor equipa. Porque os outros eram melhor equipa, tinham merecido mais. E estava tranquilo. Às vezes conto isto às pessoas e elas não acham normal. Mas ainda hoje me lembro que estava no autocarro e pensava: "Mereceram, foram melhores". Não fiquei nada furioso ou chateado. Tenho essa característica, na maioria das coisas sou muito objectivo. E voltando a essa chicotada, achei também que o ambiente que estava criado ali não era o melhor e, vamos embora.

Entretanto o seu pai faleceu, em 2000. Doença prolongada?
Cancro da mama. Aliás, eu sou seguido no IPO, porque eles têm uns programas de risco familiar. Chamam os descendentes de certos tipos de cancro. A médica do IPO disse-nos que nós éramos a primeira família de estudo neste tipo de cancro. Fui fazer o rastreio e o meu pai deixou-me o raio da célula. Ou seja, sou uma pessoa que pede algum acompanhamento e controlo nesta matéria.

Foi muito doloroso o processo do seu pai?
Foi, sobretudo nos últimos meses. Para ele e para nós. Mas a morte, lá está, para mim é uma coisa natural e necessária, neste caso até para ele e para a minha mãe. Ele já estava na ala dos doentes terminais e foi de facto melhor.

Conseguiu despedir-se dele?
Sim. O meu pai estava numa fase já muito crítica e naquele dia atrasei-me um bocadinho a ir buscar a minha mãe e eu ia naquela angústia, com medo que não fosse a tempo. Peguei na minha mãe, em Benfica, fomos para o IPO e o meu pai ainda estava vivo. Mas morreu um pouquinho tempo depois. Eu senti o último suspiro dele e disse à minha mãe: "Mãe, o pai morreu". Depois fui chamar a enfermeira, uma rapariga espanhola muito simpática, que confirmou o óbito. Se tivesse lá chegado e o meu pai já tivesse morrido, seria horrível.

Depois de Setúbal vai para o Marítimo como adjunto. De quem?
De um fulano ucraniano, Anatoliy Byshovets.

Como é que isso surge, tinha empresário?
Não, tive uns projectos de empresário (risos). Um deles, Luciano d'Onofrio, está na origem da minha ida para o FCP e da minha ida para Itália. Éramos amigos, jogamos juntos em Portimão, depois passou a agente. E essa história do Marítimo surge porque o empresário Paulo Barbosa trouxe o Byshovets para o Marítimo e a mim conhecia-me do Benfica. Achou que eu podia ser alguém capaz de apoiar o senhor. Acontece que foi difícil entre o temperamento do senhor em causa, o presidente do Marítimo e a equipa. Aquilo não resultou. A coordenação entre o russo com o presidente foi muito difícil e aquilo sobreviveu muito pouco tempo, por isso estive na Madeira três ou quatro meses. 

Estava na Madeira com a família?
Não, aí fui sozinho.

Entre o Setúbal e a Madeira ainda esteve um ano parado.
Estava com a escola que abre e sem procurar ou fazer muita pressão para que alguma coisa acontecesse. E hoje arrependo-me um bocadinho porque hoje sinto falta...Acho que podia estar num patamar diferente. Sou a mesma pessoa, sei o mesmo, tenho a mesma capacidade, a mesma formação, mas perdi em termos de mercado, de estatuto, percebo que estaria num outro nível se tivesse mantido mais contacto.
Como surge o Sp. Braga?
Eu conheço e sou amigo do Prof. Jesualdo Ferreira desde a faculdade. Ele não chegou a ser meu professor lá, mas já era treinador e eu jogava naquelas equipazinhas quando ele tenta contratar-me para o Torreense uma equipa que ele treinava. E mantivemos sempre algum contacto ao longo dos anos, ainda hoje somos amigos. E ele acaba por convidar-me e passei três anos com alguém com que realmente se aprende.

O que é que ele tem de diferente dos outros?
Não tendo sido jogador, não sendo uma pessoa de raiz muito simpática, aberta, acho que explica um bocadinho a competência dele, o facto de ter conseguido evoluir na carreira, tendo estes handicaps. Quanto não se tem essas duas características, tem de se ser realmente bom e competente. E ele foi uma pessoa de projecto, de estudo, de reflexão.

Em Braga esteve sozinho ou com a família?
Com a família menos o meu filho mais velho que estava já na faculdade aqui a tirar publicidade e marketing. Ele ficou sozinho, ficou a Mariana e o Martim, fizeram lá as escolas, a Mariana começou a faculdade dela lá. E a cidade de Braga foi uma experiência bestial. Gostamos todos muito, foram três anos muito bons.

Desses três anos o que mais destaca?
Coesão. Coesão familiar, coesão no clube, um clube a progredir, uma cidade a sentir o seu clube, um clube a emancipar-se um bocadinho da história do Benfica, porque historicamente havia ali muito bracarense, meio bracarense meio benfiquista, aquilo foi a fronteira do braguista. Não é bracarense mas braguista, o tipo que não é do Benfica, mas do Sp. Braga. Foi marcante. De alguma maneira o prof. Jesualdo contribuiu bastante.

Nunca sentiu necessidade durante esses três anos de se tornar treinador principal e deixar de ser adjunto?
Nessa fase ainda não. Depois na reflexão posterior, talvez. Quando acaba essa experiência.
Mas vai para o Benfica tratar do scouting.
Isso foi um departamento que o Benfica decidiu criar e convidou-me para liderar esse projecto.

Quem o convida é já o Luís Filipe Vieira?
Sim.

Aquelas mágoas em relação ao Benfica ficam para trás?
Sim. Mas isso não é em relação ao Benfica, mas a episódios, a pessoas. Já era outra vida. E ao mesmo tempo era uma coisa aliciante voltar ao clube numa posição de algum destaque.

Esteve lá três anos.
Sim, um como coordenador do scouting geral e dois como coordenador de scouting da formação, porque entretanto o Rui Costa deixou de jogar e passou para essa função.

Mas foi adjunto também...
Isso foi numa altura em que saiu um treinador principal, acho que foi o Camacho, e eu tinha habilitação que era necessária para estar no banco. Ajudei ou procurei ajudar um bocadinho por fora o Chalana.

A seguir vem a primeira experiência como treinador além fronteiras, numa equipa de sub-20, o Al Hilal, da Arábia Saudita.
Sim, o convite vem de um agente que eu conhecia. Nessa fase já queria voltar de facto ao treino. As experiências que tinha tido tinham deixado perceber que podia e gostava. E vou com um assistente meu, porque permitiram-me levá-lo. Correu bem. Mas uma terra dificílima para viver.

Foi sozinho?
Fui, a minha mulher foi lá um mês. Mas uma mulher lá...Mas a mais quando nós não vivíamos num condomínio, porque os treinadores principais das equipas profissionais os tipos arranjam uns condomínios onde estão os europeus, é uma coisa fechada, uma pessoa pode andar de fato de banho, mostrar a barriga, pode fazer aquilo a que está habituado. Não era o nosso caso. No nosso caso estávamos num hotelzeco normal, e aquilo é uma cultura absurda ao ponto de uma pessoa ter problemas de falar com uma mulher ou perguntar qualquer coisa, porque é uma pressão tal. foi uma experiência dificílima, mas boa, útil.

Em que aspecto?
Em termos de treino, dos resultados. Eram miúdos, que naquele país coitados...Há Uma convivência em que se percebe as diferenças, aquilo que nós ajudamos num contexto complicado. Por exemplo, miúdos com 19 anos não podem levar o cabelo espetado ou não podem falar com uma rapariga. Quando a minha mulher, a Leonor, lá estava, eu ai buscar os cafés para bebermos cá fora porque ela não podia entrar no café. Não deixou saudades. Depois, um calor, uma coisa... Nós achamos que aqui faz calor, mas lá é uma coisa de 53º graus. Uma coisa absurda. Treinamos à noite. Mas foi complicado em algumas situações. Porque o árabe que tem uma posição superior trata os outros como caca, e eu não admitia; por isso, o percurso foi pintado sempre aqui e ali por alguma revolta da minha parte que eu ia procurando controlar, mas que acabou por desgastar um bocadinho. O meu assistente foi meu parceiro, e é importante ter uma boa convivência com quem estamos todos os dias.
Tinha intérprete para falar com os jogadores?
Sim, um marroquino que ainda hoje me chama de pai. Muito humilde, mas um personagem que aprendeu por ele, trabalhou com brasileiros e desenrascou-se e estudou. Uma pessoa muito simples. E ficamos muito amigos. Ele traduziu directamente do português o que era muito confortável para mim, porque assim não tinha de falar em inglês podia falar logo em português.

Depois desse ano na Arábia Saudita o que se segue?
Há o Al Nasr do Dubai, cujo diretor era o Eriksson que me conhecia. E o mesmo agente iraquiano que me levou para o Al Hilal falou com o Eriksson e fui coordenador da Academia do Al Nasr, durante um ano. Um sítio muito diferente para melhor, para se viver. Em termos do entendimento do futebol e das relações com os treinadores, eles têm uma ideia muito diferente e desfocada daquilo que eu acho que deve ser o papel de um coordenador e a coisa não durou muito. Por isso foi só essa época e quando voltou surge imediatamente Cabo Verde, que estava sem treinador. Algumas pessoas conhecem-me lá.

A sua mulher é cabo verdiana, calculo que já lá tinha estado.
Sim, há muitos anos.

Tem um significado diferente por ser a terra da sua mulher?
Tem. Há uma proximidade grande. Fui a Cabo Verde a primeira vez em 1987. Curiosamente conheço um miúdo pequenino, a quem chamavam de Rui Águas porque ele gostava muito de mim. O pessoal lá é doido por bola e muito benfiquista. O miúdo era benfiquista e era doido por mim. Conheci o miúdo nessa altura, devia ele ter uns 6 anos e passados estes anos todos ele é director da federação caboverdiana de futebol e é a pessoa que me convida para ir. É o Gerson Melo. Ele tem feito uma carreira de dirigente fantástica. Está cá a viver, está como coordenador de desporto CPLP. É um rapaz com muito valor.

Vai para Cabo Verde com a família?
Não, o esquema é mais de evento, seja formações para dar, sejam estágios, sejam jogos ou torneios para observar, por isso não é habitação permanente.
Mas como foi essa primeira experiência como seleccionador?
É menos estressante do que ser treinador de um clube, porque é um stress espaçado. É um tipo de trabalho diferente, mais de observação, de pesquisa.

Mas não deve ser nada fácil num país como Cabo Verde onde há várias condicionantes...
...Sim, desde logo de infraestruturas, de poder financeiro. Por exemplo, nós jogamos com uma equipa africana mais poderosa, em Cabo Verdade no dia 1 e jogamos no dia 5 o 2º jogo no país em causa e há seleções que têm o avião governamental, o que permite que no mesmo dia a equipa viaje, descanse, treine. Cabo Verde não, Cabo Verde tem que saltar para uma ilha, depois tem que saltar para Lisboa, depois tem que saltar para a África do Sul. Estou a dar o exemplo de Lesoto, onde vamos jogar. A Tanzânia, os Camarões, a Nigéria, que têm outro poder económico quanto mais não seja ganham diretamente por esse conforto. Porque viajar em África é difícil. É demorado, depois os aviões são pequenos, os jogadores que têm as pernas grandes vão encolhidos.

Em termos de recursos humanos também não deve ser fácil.
Sim, são um milhão e meio contando com os que estão em todo o mundo. Os melhores jogadores estão todos fora e muitos jogam por outro países. Reunir as pessoas e dar um corpo, colectivo, não só no campo como fora do campo, e nisso eles são difíceis de igualar porque têm um sentimento muito de equipa, de país, de bandeira, de hino, de emigração, portanto dificilmente podia ser melhor e ajuda muito. Em termos técnicos é exigente porque dependemos de uma série de filosofias diferentes de treinadores e depois temos quatro ou cinco dias para unificar as ideias. Que é difícil. Uma pessoa treina de uma maneira todo o ano e de repente vem outro fulano dizer não faças isso assim porque eu quero antes assado. Por isso, o esforço tem de ser ao milímetro, organização, a optimização de tudo aquilo que se faz tem de ser aproveitando ao limite. Enquanto pessoa e enquanto treinador o papel é muito de abraçar a malta que chega e fazê-la funcionar em pouco tempo.

Foram dois anos e vem embora por questões financeiras certo?
Também, mas não só. Porque a direcção que me convidou entretanto foi substituída. Houve eleições eles quiseram sair e entraram outros. Não foi só pelo dinheiro, se fosse só pelo dinheiro eu não me tinha vindo embora, foi um conjunto de situações que achei que não podia continuar. Entretanto dá-se o inverso. Esses senhores que lá estavam saem e regressam aqueles que me contrataram. E são gente que eu sei que dá garantias de mesmo numa estrutura limitada de poucos recursos, mas o valor humano está lá e a organização e o profissionalismo.

Ficou feliz com o regresso então.
Fiquei.

A sua maneira de ser encaixa mais no papel de seleccionado do que no de treinador?
Não, acho que há diferenças de facto, mas é uma questão de ajuste de flexibilidade, de perceber o contexto. Acredito que haja gente que encaixe num contexto e noutro não. No meu caso acho que tenho a elasticidade suficiente para acertar tanto num como noutro projecto.

Tem pena de não ter sido mais treinador de clube?
Tenho. Tenho porque é mais diário, é mais stress, mas ao mesmo tempo o exercício de treino, do dia a dia da melhoria, é algo que faz falta e desenvolve mais o treinador. O dia a dia é que nos melhora. 

Está disposto a voltar a treinar diariamente?
Sim. Foi o que fiz agora no Egipto que foi a última passagem antes de regressar a Cabo Verde.

Como foi no Egipto?
Difícil. País difícil, se a I divisão já é difícil lá no contexto de divisão secundária no Egipto é horrível. Ir jogar fora é uma coisa...

Como assim?
Não se sabe o que vai acontecer. Em termos de segurança, de qualidade dos campos, dos árbitros. 

Alguma vez apanhou algum susto?
Não especialmente. Ali percebe-se que a cada esquina, e a cada esquina dentro de campo mesmo, é uma desorganização. Eles têm muitos policiais, mas curiosamente metem uma data de polícias fora do campo, depois dentro do campo passa-se tudo e não há polícia nenhum. De facto não me senti bem, não era aquilo que eu esperava. E decidi voltar. Também porque já havia a perspectiva deste regresso à seleção de Cabo Verde.
O seu filho mais velho é publicitário, mas a Mariana é jornalista na área do desporto e ao Martim seguiu-lhe as pisadas e tornou-se jogador de futebol. Como lida com isso?
A Mariana sempre praticou desporto, foi voleibolista até ter que escolher a profissão. Ela jogou voleibol na I divisão até aos 25 ou 27 anos. Jogou no Sp. Braga e depois veio para cá para a Lusófona. Adora desporto e a adoração empurrou-a para esse tipo de meio. É uma escolha dela. Mas a verdade é que ela não se imaginaria a fazer aquilo que está a fazer. É uma miúda a dar para o tímido. Ela iniciou-se no Record a escrever. Depois abriu um concurso para a televisão e achou que era uma porta qualquer que se poderia abrir melhor e foi. Foi escolhida. Acho que é uma miúda muito profissional, muito empenhada, inteligente, sabe falar, e sabe bastante de desporto e de futebol. E lidera aquilo como não imaginaria. Ela é um bocadinho como eu. Eu trabalho em televisão há muitos anos, pontualmente, e sei que as pessoas achavam que por causa do meu temperamento eu não iria ter sucesso, mas tem-se revelado o contrário. Também em competição eu não era a mesma pessoa de fora. Quem me via como civil, tranquilo, e me via a competir eram coisas diferentes. Acho que é um bocadinho o caso da Mariana enquanto cidadã e profissional da televisão. Transformamo-nos e aquilo que parece que não dá, dá.

Gosta do papel de comentador?
Gosto. gosto de facto. Não gosto de chavões, de falar aquilo que toda a gente fala. Mas também não pretendo ser demasiado sofisticado e pretensioso para tentar ser diferente. Procuro ser natural e com uma linguagem pessoal, dizendo as coisas mesmo incómodas mas de uma maneira delicada, educada. Porque às vezes é só estúpido a maneira como se é frontal. É como com os jogadores, uma da coisas que eu acho que temos de ser é verdadeiros e justos. E eles sentem. Essa é uma grande arma do treinador, ser justo.

Teve treinadores assim ou foram mais o que não eram assim?
Naquele meu tempo e até determinada altura o treinador era sempre o artista, o malandro, o que tem o truque, um bocadinho o Portugal. Hoje não. E o jogador percebe isso. O jogador tem um bocadinho fama de mal formado mas não é bem assim.

Hoje são mais bem formados?
Sem dúvida. Quando digo mais bem formados, digo com mais experiência escolar e com mais vivência. A sociedade também se abriu. Antigamente nós comíamos com tudo e, paciência. é como a história de Saltillo de que estávamos a falar. Esta gente hoje em dia... O meu filho joga no Campeonato de Portugal e tem uma opinião muito definida. É um miúdo com capacidade, com a faculdade também, apesar de ter congelado a matrícula em Letras e Literaturas da Universidade Nova.

Percebeu desde cedo que o Martim ia ser jogador de futebol?
O Martim revelou qualidades desde muito cedo, não só para mim, como também para os clubes. O mesmo Aurélio Pereira que me convidou a mim, convidou a ele.

Ele também sofre com o peso do nome?
Sem dúvida.

Isso tem complicado mais do que ajudado?
Não tenho qualquer tipo de dúvida. Nem em relação a mim, nem em relação a eles. Embora no caso da Mariana é diferente, até porque ela se afirma com muita clareza. O Martim sofre de maneira diferente, porque é a mesma actividade do avô e do pai.

Mas ficou contente por ele ser jogador?
Sim. Mas ele escolheu. Embora de facto ele tenha capacidade para jogar. Ele tecnicamente é muito melhor que eu; é mais um médio ofensivo do que um ponta de lança.

Porque é que ele não vingou num grande?
Eu não acho nada, porque ele não teve essa oportunidade ainda. Ele nesta fase tem andado todo este percurso por esta divisão. Não tem tido oportunidade de elevar um bocadinho o nível da competição, que seria a II Liga. Achei que este ano ia ter essa oportunidade e até agora ainda não apareceu. E é uma pena, porque é um miúdo que tem qualidades que está um bocadinho fora...quem o vê jogar diz: "Este jogador não devia estar aqui".

Então porque é que acha que esse salto ainda não aconteceu?
Pois, não sei. Eu não queria exagerar na história do pai, mas tenho a certeza que não ajuda.

Ele tem uma tatuagem do avô numa perna.
Duas, fez agora a do pai também.

Isso deixa-o orgulhoso ou não é fã de tatuagens?
Eu fiz uma em Itália. Uma pequenina, que um cãozinho a babar-se supostamente a olhar para alguma cadelinha (risos). Mas já perdeu alguma cor. Na altura em Itália fazia-se bastante e os meus colegas faziam grandes tatuagens e eu naquele contexto decidi fazer uma pequenita.

Ainda não falamos dos famosos 6-3 e 7-1 entre Benfica e Sporting. Esteve em ambos.
Sim. 7-1 na primeira fase em que estive no Benfica, 6-3 na segunda.

O que recorda desses jogos?
Recordo que nos 7-1 não devia ter jogado (risos). Não só pelo resultado mas porque na semana anterior que tinha marcado dois golos ao Belenenses, tinha sentido uma dorzinha no adutor e devia ter ficado quieto. Mas eu estava em boa forma e evidentemente o treinador queria que eu jogasse. E fiz um teste e decidiu-se que eu entraria.

Mas como explica aquele resultado?
Tudo nos corre mal e aos outros tudo corre bem. Não há muito mais a dizer. É a inspiração de alguns e a desinspiração total de outros. No 6-3 também é isso. Um João Pinto inspirado. São números raros, mas que ficam. Esse 6-3 é um jogo que valia um campeonato praticamente, por isso é uma vitória muito importante, muito contundente, muito especial. E a outra é uma derrota também muito especial, que teve aquele efeito humilhante mas que não nos impediu de ganhar o campeonato nesse ano.

Há uma outra história antiga, que veio a público e que tem a ver com a rivalidade entre FCP e Benfica. O enxofre no balneário. Conte-nos lá o que aconteceu realmente.
Isso foi quando visitamos o FCP, jogo importante do campeonato e ganhámos 2-0, em 1991, no meu dia de anos. O descaramento era tal e a rivalidade levada ao extremo e a guerra entre clubes também que nós quando chegamos ao balneário eles tinham posto esse tal produto que eu não sei exactamente o que era, mas que não permitia que alguém o cheirasse, que se mantivesse dentro do balneário. Enfim, mais um episódio.

É supersticioso?
Não. Embora às vezes tenho aquelas coisitas que acho que qualquer um de nós tem, mas nada que eu consiga recordar o quê em concreto.

Alguma vez foi alvo de praxe ou praxou?
Não. Eles agora na selecção de Cabo Verde cada vez que há um estreante, tem de fazer um discurso e cantar. É uma ocasião engraçada sempre, mas não me lembro de ter feito nem que me tenham feito. 

Disse numa entrevista que pelo facto de antigamente haver muito menos câmaras nos jogos, havia muita pancadaria que passava em claro. Acha que havia mais maldade do que há hoje?
Havia, claramente, mas porque era permitido. Valia um bocadinho de tudo. Árbitros claramente mais pressionados, para ser elegante... E a cobertura dos jogos infinitamente mais ligeira. Por isso havia muita coisa que se passava naquele tempo que hoje me dia seria detectado. E o jogador hoje em dia também é muito mais defendido fisicamente do que era na altura, onde havia entradas que hoje seriam cartão vermelho directo e que não eram naquele tempo. Nesse aspecto acho que melhorou a arbitragem e os critérios.

O que retirou de si enquanto jogador que o tenha ajudado como treinador?
Muita coisa. A minha vivência, experiência aquilo que senti de treinadores, o que gostei e não gostei acabam por formar o produto que sou hoje, independentemente da questão mais científica, do método, daquilo que se aprende. Antigamente só se dava atenção aos fulanos que jogavam. Uma das coisas que mais me incomodava na altura enquanto jogador e enquanto assistente técnico de alguns treinadores era isso, porque num plantel precisa-se de toda a gente e sempre achei terrível que o tratamento não fosse igual. E essa é uma das minhas regras base, tomar atenção se calhar até mais àqueles que não jogam.

Quais os treinadores que mais o marcaram pela positiva e pela negativa?
Pela positiva, Jesualdo Ferreira. Ele foi meu treinador assistente do Toni, no Benfica. Pela negativa, o do E. Amadora, Acácio Casimiro. Não sendo bom achava que era bestial e era um tipo arrogante. Eu sempre gostei de cumprir horários e quando eu chegava cedo ao campo do E. amadora ele estava no café à frente do estádio, pois ele conseguia chegar atrasado ou chegar a correr. Isso é logo uma coisa que eu achava estúpida. Depois, a própria vivência.

Se fosse jogador hoje o que mudava em si?
Teria que moderar o meu relacionamento com os centrais (risos). Teria que moderar pela evolução tecnológica.

Onde é que ganhou mais dinheiro?
Onde fiz a minha evolução financeira foi no FCP. Fui para o FCP ganhar 11 vezes mais do que ganhava no Benfica.

Nunca se meteu em negócios, tirando a escola?
Com o Samuel e com o Vando, meus colegas de Benfica, cada um menos experiente que o outro, metemo-nos num supermercado. Surgiu a hipótese ali em Alfragide onde comprei o meu primeiro apartamento, eles viviam também naquela zona. Surgiu uma loja, aquelas coisas que não se pensa muito, e enfim, gente que joga futebol e que entrega a alguém supostamente credível e sério...E pronto, passado pouco tempo aquilo não deu. Mas pronto fomos colegas desse negócio (risos).

Sente que houve pessoas que se aproveitaram muito de si?
"Amigos" e mesmo um amigo verdadeiro, mas isso por uma questão patológica de vício de jogo. E outros vários. Tardei muito em ouvir ou em ter cuidado ou em não acreditar quase imediatamente nas pessoas. Isso custou-me bastante. Por isso, enquanto jogador teria alterado também essa minha natureza de acreditar nas pessoas.

Tem algum hóbi extra futebol?
Não.

O que faço nos tempos livres?
Vejo umas séries. Vi "A Casa de papel" o "Breaking Bad", que foi a melhor série até agora.

Tem algum género de música preferido?
Normalmente digo que gosto de música boa (risos), mas isso é subjetivo. Gosto muito de ouvir música. Ultimamente tenho ouvido música cubana.

É bom dançarino?
Não. Mas gostava de dançar se ninguém estivesse a olhar para mim. Gostava de aprender. A Leonor dança bem. E cantar? Não desafino. Tenho uma voz, para um civil, razoável. A minha irmã, Lena, numa determinada altura tinha ficado sem o vocalista e convidou-me, mas eu não tinha na altura disponibilidade mental para esse tipo de desafio. O meu pai cantava bem, e assobiava muito bem, tinha aquela coisa dos pássaros, dos animais. Eu também sou um bocadinho assim como ele. Mas ele era africano de nascimento, os cães adoram-no, ele tinha aquela sensibilidade animal. Ele conseguia imitar vários sons, desde papagaios a pardais.



O seu caminho nunca se cruzou com o da sua irmã?
Não, nem os amigos. A minha irmã do meio juntava-se à Lena, com os amigos. nós andámos um bocadinho separados. Depois, a partir do momento em que começamos a tocar a nossa música, fomo-nos apoiando um ao outro. Eu gostava do que ela fazia, entrei num teledisco que ela fez na praias das Azenhas do Mar, apareço a dar uns toques na bola enquanto ela está na piscina a cantar. Ia ver os concertos quando podia.

Alguma vez sentiu necessidade de lhe deitar a mão?
Sim. A Lena um temperamento um bocadinho diferente, eu sou mais parecido com a Cristina, mas sempre vivemos muito a nossa vida. Mesmo hoje em dia, a frequência com que nós vemos é muito baixa. Falamos, preocupamo-nos, aqui e ali comunicamos, mas não somos daquelas famílias que estão em permanente contacto.

Não se reunem no natal?
Depende. Cada um tem o seu núcleo. Não é aquela tradição familiar de passarmos juntos. Sempre fomos cada um no seu caminho, embora sabendo dos outros, mas com intervenção discreta."

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